Debate: a Lei da Anistia deve ser revista?

A palavra anistia vem do grego amnestía, que significa “esquecimento”. Em 28 de agosto de 1979 foi sancionada a Lei da Anistia. Apesar do nome, não significou o esquecimento nem o perdão dos crimes cometidos por autoridades durante a Ditadura Militar. Os ministros Paulo Vanucchi e Tarso Genro mostram disposição para rever a interpretação desta lei, podendo julgar os torturadores.

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Ameaça ao Estado de Direito – por Marília Fiorillo
Anistia: geral e irrestrita – por Tercio Sampaio Ferraz Junior


Ameaça ao Estado de Direito

por Marília Fiorillo

Há cerca de dois meses, Radovan Karadzic, mandante do genocídio de 1990 contra os bósnios-croatas nos Bálcãs, foi capturado em Belgrado. A sensação de alívio foi geral: o mundo inteiro, sérvios inclusive, comemorou sua prisão e julgamento por um Tribunal da ONU.

O repúdio mundial a Karadzic é consensual, pois há consenso sobre a natureza do delito: genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Jamais se cogitou classificá-los como crimes políticos, portanto passíveis de anistia.

Do mesmo modo, seria absurdo qualificar como políticos os assassinatos e mutilações ou a escravidão de crianças perpetrados pelos senhores da guerra em Ruanda ou Uganda.

Este último país voltou às manchetes agora em setembro, pois Joseph Kony, chefe da famigerada LRA, Lord’s Resistance Army (Exército dos Combatentes de Deus), que há vinte anos aterroriza o norte do país, ameaçou uma escalada na violência caso as autoridades de Kampala não convençam a Corte Internacional de Haia a retirar os mandados de prisão expedidos contra eles.

Pode haver, entre os ugandenses, medo de retaliação por parte da gangue de Kony, mas o que prevalece é a idéia de que, sem justiça e punição, paz e reconciliação serão precárias.

A tortura, como o genocídio, não é um crime político, mas de lesa-humanidade. Como os crimes de Karadzic e Kony, não há escusas, atenuantes ou prescrição.

A Convenção de Genebra e outros tratados internacionais estipulam claramente que a tortura, como ataques à população civil ou o impedimento de socorro aos feridos são inadmissíveis.

Quando o nazista Eichmann, um dos executores da “Solução Final” (o extermínio de judeus nos campos de concentração), foi julgado em Jerusalém, alegou que estava apenas obedecendo a ordens.

O tribunal condenou-o à morte, pois, como ressaltou na ocasião a filósofa Hannah Arendt, se a desculpa de Eichmann era a de que ele só cumpria funções, e estas equivaliam ao menosprezo absoluto pelo direito dos homens à vida, tal prerrogativa, com toda razão, lhe devia ser negada.

Deixar de punir crimes contra a humanidade, como a tortura, é arriscado. Significa consentir com uma insidiosa situação de exceção, acatar um enclave de ilegalidade na ordem jurídica. Isso, sim, ameaça feio o Estado de Direito. Num momento em que tanto se debate, no Brasil, a doença da impunidade, e se clama pela aplicação draconiana da lei para os corruptos, por que ser leniente com um crime reconhecidamente mais grave e hediondo?

Como disse a presidente do Chile, Michelle Bachelet, ela mesma torturada durante a ditadura de Pinochet, uma ferida só cicatriza se antes for limpa. Do contrário, a infecção se alastra e põe em colapso todo o organismo.

Marília Fiorillo é professora doutora da ECA-USP.
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Anistia: geral e irrestrita

por Tercio Sampaio Ferraz Junior

A anistia está novamente no centro de uma disputa jurídica e moral. O sentimento que preside o inconformismo com a anistia concedida aos torturadores é perfeitamente compreensível. A tortura viola o senso de proporcionalidade, pois o torturador, por mais razões que busque para o seu ato, aniquila a dignidade humana.

A lei concedeu anistia a todos que, entre 2/9/1961 e 15/8/1979, cometeram crimes políticos ou com eles conexos (art. 1º), sendo considerados conexos os de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política (par.1o), excluídos os condenados pela prática de crime de terrorismo, assalto, sequeestro e atentado pessoal (par. 2º). No par. 1º estavam os que, mesmo pela prática de tortura, teriam agido no cumprimento de uma ordem funcional. No par. 2º, excluídos da anistia, os que teriam praticado atos contra-revolucionários considerados crimes.

Essa exclusão violava um princípio de justiça: anistiava os torturadores, mas não os terroristas. Diante desse flagrante tratamento desproporcional, a jurisprudência do Superior Tribunal Militar (STM) estendeu o benefício aos terroristas: a anistia tornou-se geral e irrestrita.

O fato de a anistia ter-se tornado irrestritamente geral, mediante uma jurisprudência com base num argumento de justiça proporcional, não igualou todos os anistiados, mas, por ser esquecimento, desvinculou-se de uma relação meio/fim, portanto, de um cálculo de avaliação da gravidade de atos e correspondentes punições.

Ora, uma interpretação da Lei, sobretudo com o fito de punir militares por atos de tortura, reverterá o argumento jurisprudencial, pois, num aspecto da justiça como justeza proporcional, solapa a extensão da anistia aos terroristas, fazendo com que todo o universo de avaliações mutuamente negativas (exclusão/inclusão de terrorismo/tortura) volte a ser discutido. Ou seja, ainda que se argumente tratar a tortura de um crime contra a humanidade e, portanto, imprescritível, há de se lembrar que tratados internacionais consideram, por exemplo, também o sequeestro motivado por razões políticas um crime contra a humanidade.

Como o art. 8º das Disposições Constitucionais Transitórias (CF de 1988) concede anistia aos atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção institucionais, a revisão teria de partir desse fato.

Isto é, a reinterpretação da Lei, dado o objetivo de uma anistia irrestritamente geral, o argumento de justiça (invocado pelo STM para estendê-la aos que, movidos por razões políticas, tenham praticado atos de terror, por exemplo, sequeestro) acabaria por ser, inevitavelmente, utilizado em favor dos torturadores. Se não alcança os torturadores, por extensão proporcional, também não alcançaria os seqüestradores.

Tercio Sampaio Ferraz Junior é professor titular da Faculdade de Direito-USP.
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