Debate: o combustível que gera polêmica

Com a forte escalada no preço do petróleo, o etanol tem sido apontado como uma alternativa energética para o mundo. No Brasil, porém, ainda existe polêmica. De um lado é tido como a estrela de nossa economia e de outro, como inimigo que pode gerar escassez e alta de preços de alimentos.

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Etanol: problema ou solução – por Henrique Rattner
Alimento versus energia – por José Goldemberg


Etanol: problema ou solução

por Henrique Rattner

A expansão do cultivo da cana-de-açúcar para produção de etanol tende a competir com a produção de alimentos e estimular o avanço sobre as áreas de pasto e da soja, e pressiona pela incorporação de terras como o cerrado e outros biomas virgens, sensíveis à poluição. No Brasil, a expansão de cultivo da cana para etanol tem se concentrado em São Paulo e no Mato Grosso, causando a expulsão de pequenos lavradores, incapazes de competir por causa dos custos cada vez mais elevados dos insumos.

O etanol brasileiro à base de cana é altamente competitivo para o americano à base de milho e o europeu, com base na beterraba. O baixo custo relativo do etanol favorece os consumidores que optaram por carros menos poluentes, como o flex-fuel. Dada a experiência secular do Brasil – quase 500 anos de cultivo da cana e sua destilação, o país dispõe de uma tecnologia exportável, inclusive do uso do bagaço para geração de energia.

Entretanto, é necessária uma série de precauções para a construção de novas usinas, regulamentando o licenciamento, para: a) aliviar os impactos ambientais; b) conservar a biodiversidade; c) proteger os recursos hídricos; d) melhorar a qualidade do ar e e) cuidar do solo, por meio de zoneamento agro-ecológico que limita, regula e fiscaliza.

A produção de etanol a partir da cana-de-açúcar causa uma série de impactos negativos cujos custos não são assumidos pelos produtores, mas sim transferidos como externalidades à população. As queimadas de cana para moagem causam uma densa fuligem que se espalha por vastas áreas afetando seriamente a saúde da população, particularmente de crianças e idosos que sofrem de problemas respiratórios.

Outro problema decorre do uso da vinhaça, subproduto da destilação. Cada litro de etanol produz 14 litros de vinhaça que, em parte, é aproveitada para adubar os plantios. Porém, seu uso eleva o nível de substâncias tóxicas no solo e afeta a temperatura da água nos locais onde é utilizada para irrigação, diminuindo a quantidade de oxigênio, vital para a vida aquática.

Parece mais fácil resolver os problemas energéticos suprindo etanol para a indústria automobilística do que resolver a escassez crescente de alimentos que afeta a população mais carente nos países pobres. A escassez de alimentos não é problema de falta de recursos, mas de sua má alocação. Terras, máquinas, fertilizantes e sementes são desviados para a pecuária e produção de soja para alimentar o gado e, hoje, são destinados para a insaciável indústria automobilística, em detrimento do abastecimento das populações carentes de alimentos.

Nos países mais pobres, o custo da cesta básica atinge até 60% do orçamento familiar (na Índia, e até 30% no Brasil e no México) e o aumento dos insumos – fertilizantes, máquinas e sementes – reflete-se na situação precária dos consumidores de baixa renda. A soma dos aumentos eleva dramaticamente os preços dos alimentos.

Henrique Rattner é professor titular (aposentado) da FEA-USP
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Alimento versus energia

por José Goldemberg

O Brasil começou a produzir etanol de cana-de-açúcar em grande escala a partir de 1975. Antes disso, desde 1931, cerca de 5% de álcool era misturado à gasolina. Ele é um excelente combustível para motores de automóveis e só não era usado em maior quantidade devido ao seu alto custo.

Após a primeira crise do petróleo de 1973, a importação do combustível, que custava ao Brasil US$ 600 mi por ano subiu para US$ 2,5 bi, cerca de metade das transações com o exterior na época.

A motivação do Governo em lançar o Proálcool (e subsidiá-lo) era de natureza econômica e estratégica. Considerações de natureza ambiental não faziam parte das preocupações do Governo.

O grande aumento da produção de álcool fez com que seu preço caísse rapidamente, e em 2004 ele era inferior ao da gasolina sem qualquer subsídio. A produção atingiu mais de 20 bilhões de litros por ano e a plantação de cana para isso ocupa hoje uma área de cerca de 3 milhões de hectares. Outra parte da produção de cana é usada para a produção do açúcar. Já a área total usada para agricultura no país é muito maior, ocupa cerca de 60 milhões de hectares.

Em 1978, estudos feitos na USP demonstraram que o etanol da cana-de-açúcar é praticamente renovável porque toda a energia necessária à sua produção vem do bagaço da própria cana. Em comparação, o etanol do milho é praticamente não-renovável porque usa grande quantidade de eletricidade e petróleo em sua produção. Pode-se dizer que com cana-de-açúcar se converte energia solar em etanol. Etanol de cana-de-açúcar, portanto, emite no ciclo de vida uma pequena quantidade de gases de efeito estufa.

Apesar dessas vantagens, argumenta-se que o uso de cana-de-açúcar esteja afetando a produção de alimentos, criando um “deserto verde” e derrubando a floresta amazônica. Também alegam que a plantação de cana faz uso de mão-de-obra escrava e elimina os pequenos produtores rurais.

A maioria destas alegações não tem fundamento. A expansão da cultura da cana está ocorrendo sobre pastagens degradadas (abundantes no país) e não está afetando, até agora, a floresta amazônica. Agricultura familiar não é de fato adequada para a produção de etanol em grande escala. Micro e mini destilarias não são competitivas por razões tecnológicas. Ainda assim, no Estado de São Paulo, os produtores de cana são cerca de 70.000. Outras culturas do Estado usam também grandes á-reas, como café e laranja.

A cultura mecanizada está sendo implantada rapidamente no estado de São Paulo. Além disso, a qualificação dos operários e seu registro legal têm melhorado muito.

O conflito alimento versus combustível se deve ao aumento da produção do etanol de milho nos Estados Unidos, que provocou perturbações no preço dos alimentos, já que a área dedicada ao milho avançou sobre a área dedicada à soja. No Brasil, o aumento da área de plantação de cana não afetou o preço dos alimentos.

José Goldemberg é professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia-USP
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