Mesmo preparado, país sofrerá com crise

Márcio Nakane diz que câmbio alto e falta de crédito serão os principais efeitos da crise financeira global na economia brasileira

O mundo tem vivido momentos de muita tensão com a crise que começou nos EUA e se alastrou pelo sistema financeiro global. O professor da FEA Márcio Issao Nakane, doutor em Economia pela Universidade de Oxford, coordenador técnico da Tendências Consultoria Integrada e especialista em Instituições Monetárias e Financeiras do Brasil, fala ao Jornal do Campus sobre o colapso nos mercados e diz que o Brasil não está imune aos efeitos da crise.

Jornal do Campus: A crise nos mercados financeiros se intensificou nos últimos dias. O Brasil deve se preocupar?
Márcio Nakane: Acho que há um mês tínhamos a percepção de que a economia brasileira conseguiria passar por esse processo sem muita turbulência. Mas, hoje, a percepção das pessoas é de que vamos sofrer um pouco. Creio que a economia brasileira será afetada.

JC: Quais serão os reflexos aqui?
MN: Há dois canais nos quais podemos observar tais reflexos. De um lado, temos o canal que vem via câmbio. O que aconteceu é que houve um aumento do risco no mercado financeiro. Os investidores nacionais estão saindo de lugares que acham muito arriscados e indo para lugares que acreditam ser mais seguros. Atualmente, o lugar que eles acham seguro para investir são as aplicações em títulos do Tesouro do governo norte-americano. Isso provocou uma fuga de recursos aplicados em Bolsa do Brasil para o exterior.. Em virtude disso, a taxa de câmbio disparou. O segundo canal vem via crédito. Como o problema de liquidez do mercado financeiro está muito grave, isto é, ninguém está querendo emprestar, os recursos disponíveis para o Brasil diminuiu muito. Muitas empresas e bancos brasileiros captavam recursos no exterior e essa fonte secou. Acredito que futuramente iremos sentir outro reflexo, que é o da esperada redução na atividade econômica do mundo.

JC: O Banco Central do Brasil (BC) anunciou medidas para promover exportações, como linhas de financiamento para empresas. Isso é uma solução ou é somente algo paliativo?
MN: Talvez paliativo não seja a palavra mais correta, mas foi, de fato, uma ação emergencial. Grandes empresas que exportam estão enfrentando muita dificuldade para financiar suas atividades. No entanto, não é função do BC oferecer tais linhas de financiamento. Quem as oferece são os bancos comerciais.

JC: O senhor acha o pacote de salvamento criado por Henry Paulson, secretário do Tesouro norte-americano, imprescindível para a economia mundial voltar a ter bom desempenho?
MN: Creio que o plano faz duas coisas importantes: primeiro, ele trata o problema como sistêmico, ou seja, que em princípio pode atingir o sistema financeiro como um todo, ao invés de atingir bancos individualmente. O segundo ponto é restaurar a confiança nos mercados. A atuação do Tesouro americano de ajuda a bancos caso a caso não resolve o problema. Não se soluciona a crise de confiança do mercado atuando separadamente. Com o pacote, a confiança?nos mercados é restaurada. Assim, eles começam a retornar à normalidade.

JC: Irresponsabilidade por parte dos investidores ou falta de regulamentação por parte do governo norte-americano: de quem é a culpa para a crise ter chegado a esse estágio?
MN: Há culpa para todos os lados. Culpa da regulamentação, certamente, leniente. Culpa de uma política monetária muito frouxa nos anos Alan Greenspan [ex-presidente do Banco Central americano] que permitiu o acúmulo dessa bolha no mercado imobiliário.

JC: Após a crise, os EUA farão uma melhor regulamentação do mercado ou isso é apenas um discurso momentâneo?
MN: Eles serão forçados a isso, até por pressões externas. Há acordos internacionais de regulamentação de capital mínimo. Os EUA e o mundo se encaminharão para um cenário de maior controle desse tipo de atividade. Então, vamos ter maior regulação de um lado e, por parte da indústria, melhores práticas.

JC: Alguns relatos pessimistas afirmam que o capitalismo sofreu o maior golpe desde a Grande Depressão de 1929. O senhor concorda com tais visões?
MN: Acho que ainda é cedo para essa avaliação, porque a coisa está ainda muito restrita ao mercado financeiro. Obviamente, isso irá respingar na economia. Não sei se estamos atravessando a pior crise desde 1929 ou não. Até o momento não temos evidências disso.

JC: Alguns pronunciamentos do governo brasileiro dizem que o problema é só nos EUA e que não afetará o país. A população deve confiar nesse discurso?
MN: Há diferentes autoridades se pronunciando de maneiras distintas. O presidente do BC [Henrique Meirelles], em seus discursos mais recentes, já admite que a economia brasileira pode ser afetada. Uma postura desse tipo é mais razoável, mas conhecendo nossos políticos, não sei se é isso que acham.

JC: Que consequeência essa crise poderá ter para o cidadão brasileiro que não investe na Bolsa?
MN: Acho que o cidadão se preocupa com a inflação. Talvez, para as pessoas que estão fora do mercado financeiro, é mais importante saber o que acontece com o câmbio. Porque, para os demais aspectos (como emprego, massa de salário, rendimento), ainda se tem uma perspectiva boa para esse ano e para o ano que vem. Ainda não observaremos um grande problema de desemprego, que é outra coisa que certamente preocupa as pessoas.

JC: Nessa crise, o Brasil está melhor ou pior que os demais países emergentes?
MN: De uma forma geral, acho que o Brasil está em situação melhor. Alguns países, como a Rússia, estão sofrendo bastante. Acho que não é o caso da China. A fonte básica de crescimento da economia chinesa, atualmente, está mais relacionada com a economia doméstica do que com a economia externa. Então mesmo que a China sofra, não sofrerá tanto, pois boa parte de seu impulso vem de sua própria economia. No geral, estamos numa situação melhor do que a de outros países, por conta de uma menor exposição de nosso sistema financeiro aos mercados com problemas no resto do mundo. E também porque nossa economia não depende tanto do setor externo.

JC: Mesmo com a crise, alguns economistas afirmam que o consumo dos países emergentes pode manter a economia crescendo em até 3,5% ao ano. Hoje, a pauta de exportação brasileira, que é mais diversificada, pode ser mantida mesmo em um período?de recessão?
MN: Essa é uma questão importante da qual não sabemos muito. Boa parte dessas commodities [produtos primários em estado bruto negociados nas bolsas de mercadorias] está indo para a China ou para países desse tipo. Portanto, com a desaceleração da economia de tais países, certamente haveria um impacto sobre as atividades. Ninguém sabe ao certo o grau em que serão afetadas. A China, tendo algum problema econômico que reduza seu crescimento, trará impactos sobre o mercado de commodities de uma forma geral. E o Brasil, sendo um grande exportador de commodities, sofreria bastante.

JC: Qual a lição que essa crise irá deixar?
MN: A principal lição que ela deixará é que a próxima crise não deverá vir do subprime [empréstimos para pessoas com histórico de más pagadoras] americano. Tirando isso, não aprendemos muito. Já tivemos episódios passados de crises financeiras e eles não impediram que a atual acontecesse. Não aprendemos muitas lições da história.