País é modelo em economia solidária

Brasil é referência mundial em economia solidária; Paul Singer acredita que a participação efetiva da sociedade civil é fundamental para o desenvolvimento desse sistema

Economista, ativista político de grande importância na luta contra a ditadura militar, professor universitário e autor de diversos livros sobre economia, sociologia e política, Paul Singer começou a se interessar por economia solidária nos anos 90, quando a taxa de desemprego na cidade de São Paulo atingia níveis exorbitantes. Vendo nessa forma de organização ecônomica uma solução para o problema, ele é hoje um de seus principais difusores no país. Atualmente, Paul Singer é Secretário Nacional de Economia Solidária.

Paul Singer é Secretário Nacional de Economia Solidária (foto: Ana Carolina Prado)
Paul Singer é Secretário Nacional de Economia Solidária (foto: Ana Carolina Prado)

Jornal do Campus: O senhor poderia explicar a idéia de que a economia solidária é a extensão da democracia ao campo econômico?
Paul Singer: O empreendimento capitalista é autoritário. Os trabalhadores não podem decidir nada, sua capacidade de raciocínio e de fazer com que as coisas melhorem não é mobilizada. Ao passo que na economia solidária é diferente, como todos participam das decisões e de suas conseqüências, tanto os acertos como os erros, as pessoas se desenvolvem. Aprendem, discutem e crescem. Uma das coisas trágicas do capitalismo é que muitos trabalhadores saem da empresa no fim de suas vidas produtivas sabendo quase o mesmo que sabiam ao entrar.

JC: A economia solidária não é só uma variante da economia capitalista. Existe a possibilidade de a economia solidária substituir totalmente a economia capitalista?
PS: Sem dúvida. O ideal seria as pessoas poderem optar por um tipo de economia, com suas vantagens e desvantagens. Mais do que isso, que as pes-soas possam experimentar as duas. O que é um pouco a realidade hoje. Apenas a economia solidária não tem ainda muito capital acumulado, então ela é mais frágil.

JC: A economia solidária não se resume a cooperativas, é um conceito mais amplo.
PS: Ele é bem mais amplo. Existem também bancos comunitários, clubes de troca, organizações de consumidores. Existe todo um campo de associação, que não tem limites. Nós temos grupos de troca de saberes. Um ensina espanhol para o outro, que ensina violão para o primeiro. Se você pegar 30 pessoas, cada um tem o que ensinar e tem interesse de aprender, vira um clube de troca de conhecimentos, sem custos para ninguém. Coisas assim estão acontecendo.

JC: A que o senhor acha que se deve o atual crescimento da economia solidária?
PS: Primeiro, porque a economia capitalista deixa muita gente à margem. Ela é a maior parte da economia brasileira em valor, mas não em ocupação de gente, representando menos da metade da população economicamente ativa. Existe um mundo de gente que não tem emprego formalizado, carteira de trabalho, aposentadoria. E a economia solidária resulta dessa necessidade de as pessoas se organizarem para melhorar, se fortalecerem economicamente.
Ao lado disso, existe um apoio de parte da sociedade brasileira que é vital. Começou com a Igreja Católica, nos anos 80. Depois os sindicatos, principalmente a CUT, e os trabalhadores. E, finalmente, a universidade. Existem incubadores em 80 universidades. E essa contribuição vai muito além da capacidade das incubadoras efetivamente consolidarem um certo número de cooperativas. Claro que isso é muito importante. [É na universidade que] se reúnem, discutem e avaliam novas experiências. O volume de trabalho científico sobre economia solidária está crescendo muito hoje no país. E ainda existe um apoio externo a ela. A economia solidária no Brasil é tida como a mais avançada no mundo. Os alemães, argentinos, espanhóis, vêm aqui aprender a fazer mapeamento com a gente.

JC: Se a sociedade civil é tão importante, qual é a função do Estado?
PS: A economia solidária é efetivamente um produto da sociedade civil. As políticas de apoio à economia solidária têm um papel de coadjuvante, não de protagonista. O governo federal tem os recursos, mas não é uma coisa que ele está promovendo. O Estado ajuda, apóia financeiramente. Acho que seu principal papel é apoiar os apoi-adores [risos].

JC: O capitalismo consegue absorver movimentos desviantes, que promovem alguma mudança. Como fazer para a economia solidária acabar não sendo absorvida?
PS: Há um processo possível, um perigo pelo menos de degenerescência, por que a lógica dominante é a capitalista. Um exemplo concreto: você tem uma fábrica recuperada, na qual os trabalhadores criam uma disciplina horizontal. Existem funções vitais que poucas pessoas na fábrica podem exercer, como as relações com os bancos, com os clientes, com o governo. Algumas pessoas são eleitas para fazer isso, mas as decisões são tomadas por todos. No entanto, há uma tendência dos trabalhadores elegerem sempre os mesmos, porque têm experiência, porque deram certo. Isso é uma tendência de abandono do sistema autogestionário, porque se cria um núcleo que domina as informações vitais. Portanto, a exigência de rodízio é o mais importante . As cooperativas deveriam colocar em seus estatutos que na eleição periódica da diretoria um terço ou a metade tem que ser de gente nova. O ideal seria que todo mundo passasse por essa experiência, para poder opinar e ter um processo que eu chamo de inteligência coletiva, que dá uma outra qualidade à gestão.

JC: Existem pré-condições para que a economia solidária dê certo, nos contextos social, político, econômico? Se existem, o Brasil as possui?
PS: As pré-condições são de caráter subjetivo, principalmente, e é algo que você poderia chamar de espírito comunitário. O Brasil tem isso. Nos anos 70, por exemplo, surgiram as Comunidades Eclesiais de Base. Esse é um movimento que organizou a sociedade brasileira inteira. A economia solidária é um resultado delas, não diretamente, mas elas foram fundamentais para fomentar muitos movimentos socais que criaram a economia solidária. Ela é resultado do MST (Movimento dos Sem-Terra), da Cáritas, do movimento de moradia, das mulheres, dos negros. O Brasil tem mais condições favoráveis à economia solidária do que outros países, porque é um país em que a sociedade civil é vigorosa, é organizada e capaz de agir em conjunto.

JC: E você não acha que nos últimos anos essa atividade diminuiu um pouco?
PS: Tem gente afirmando que os movimentos sociais estão em decadência, estão enfraquecidos. Eu não enxergo isso. Você pode eventualmente ter menos luta, ter menos greves, marchas, protestos. Mas isso é uma forma extremamente superficial de olhar o movimento social. Tenho a impressão de que há uma ebulição forte no Brasil, que talvez não apareça tanto na superfície porque a modalidade dos movimentos sociais, em função dos êxitos já alcançados, pode agora se voltar um pouco mais para dentro.

JC: E como mudar a idéia de algumas pessoas de que a economia solidária é voltada para o benefício só de pessoas carentes?
PS: De um lado, a economia solidária nasce de uma tremenda crise social desde os anos 90, de Collor para cá. O desemprego em massa, maior exclusão social e assim por diante. Só que agora mudou. A partir do governo Lula, felizmente, o Brasil voltou a crescer bastante, temos mais empregos e oportunidades. E a economia solidária não parou de se desenvolver. Isso mostra que existe uma parte crescente da sociedade brasileira que deseja viver esses valores e os compartilha.