Em busca da autonomia científica

Com a produção de uma linhagem de células-tronco embrionárias, o Brasil deixa de depender de importações desse tipo de célula
Lygia Pereira, pioneira na produção de células-tronco embrionárias no Brasil (foto: Rafael Benaque)
Lygia Pereira, pioneira na produção de células-tronco embrionárias no Brasil (foto: Rafael Benaque)

Lygia da Veiga Pereira é professora associada do IB (Instituto de Biociências), mas possui graduação em Física. Depois do PhD em ciências biomédicas e da livre-docência, concluída em 2004, a professora passou a coordenar, na USP, o primeiro grupo de pesquisa do país a desenvolver uma linhagem de células-tronco embrionárias em laboratório. O sucesso da pesquisa dá mais autonomia aos cientistas brasileiros, pois permite que eles consigam esse material sem recorrer à importação. Em entrevista ao Jornal do Campus, Lygia fala sobre a importância dessa linhagem nacional, as dificuldades enfrentadas pela sua equipe e a influência que a Lei de Biossegurança, aprovada em 2005, teve no estudo.

Jornal do Campus: Quando o grupo de pesquisa iniciou seu trabalho?
Lygia da Veiga Pereira: Começamos em 2005, quando aprovaram a Lei de Biossegurança. Essa legislação permite que trabalhemos com embriões congelados. Em seguida, o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) abriu um edital para pesquisa com células-tronco. Apresen-tamos nosso projeto para a derivação de novas linhagens de células embrionárias e aprovaram. Na prática, começamos em 2006.

JC: Qual a importância da USP no processo?
Lygia: A importância da USP é ser uma universidade que dá condições, espaço e infra-estrutura aos pesquisadores. Além disso, a USP tem um prestí-gio que viabiliza e facilita o desenvolvimento de pesquisas.

JC: Que dificuldades a pesquisa enfrentou?
Lygia: A grande dificuldade é com a importação. Praticamente todos os reagentes que usamos são importados. É comum nos vermos em situações em que queremos comprar algum produto, temos o dinheiro, mas a encomenda demora de 30 a 60 dias para chegar. Essa é uma dificuldade não científica. No mais, o método é muito ineficiente: ficamos dois anos descongelando embriões e a maioria deles não resiste a esse processo, porque são embriões de baixa qualidade. Menos de 10% sobrevive. Depois de descongelado, é preciso retirar as células e, muitas vezes, elas morrem. Há dificuldades que são inerentes à pesquisa e dificuldades burocráticas.

JC: Os embriões usados na pesquisa são de baixa qualidade pois são antigos?
Lygia: Eles são de baixa qualidade porque, em geral, os embriões congelados são os que sobraram. Utilizam-se os de melhor qualidade para transferência e o restante fica guardado.

JC: Quais as vantagens do uso de células-tronco embrionárias?
Lygia: As células embrionárias são sáteis. Temos certeza de que elas conseguem dar origem a qualquer tecido do corpo humano. Em modelos animais, essas células têm efeitos terapêuticos importantes em doenças como Parkinson, trauma por lesão de medula, diabetes. No uso de células-tronco adultas, não vemos esse mesmo efeito.

JC: Antes da primeira linhagem nacional de células-tronco embrionárias, como eram feitas as pesquisas?
Lygia: Dependíamos de grupos estrangeiros, que nos forneciam células. É interessante colaborarmos com grupos do exterior, mas depender deles não é bom. Agora, temos autonomia para realizar essas pesquisas, pois sabemos fazer o processo todo, desde retirar as células do embrião e multiplicá-las, até transformá-las em neurônio, célula de músculo cardíaco e outras variações.

JC: A próxima etapa é produzir células-tronco embrionárias em larga escala?
Lygia: Em parceria com a UFRJ, o próximo passo é produzir as células embrionárias em larga escala. Queremos montar um laboratório para que essa produção ocorra em condições adequadas ao uso clínico. A intenção é que, daqui a algum tempo, estejamos em situação apropriada para iniciar testes clínicos em humanos. Por enquanto, concluímos apenas a primeira parte do estudo, que era adquirir autonomia por meio do controle de todos os processos envolvidos na terapia com células embrionárias. Dominamos o processo de estabelecimento de linhagens, mas o objetivo maior é usar essas células em terapias. Essa meta inclui vários grupos com diferentes especialidades. A equipe que coordeno não possui um conhecimento mais profundo para produzir, por exemplo, células do músculo cardíaco a partir de células embrionárias. Então, vamos repassar as células a grupos interessados em estudar essa e outras áreas que  não estamos preparados para desenvolver.

JC: Como a Lei de Biossegurança interferiu na pesquisa?
Lygia: A lei viabilizou os estudos com células-tronco. Até 2005, não tínhamos uma legislação que permitisse, explicitamente, pesquisas com embriões humanos. Então, eu não tinha coragem de começar um experimento desse tipo. Antes da Lei, havia apenas uma resolução no Conselho Federal de Medicina proibindo o descarte de embrião humano. Apesar de impor algumas limitações, como a exigência de que os embriões usados nas pesquisas estejam congelados há mais de três anos, a lei permitiu que os estudos fossem iniciados. Nesse sentido, essa lei foi muito importante para nosso trabalho.

JC: Como são as limitações legais às pesquisas com células-tronco em outros países?
Lygia: Os países têm leis diferentes. No Reino Unido e nos Estados Unidos, é possível até fazer o embrião para pesquisa: tendo um doador de esperma e uma doadora de óvulos, pode-se produzir um embrião para ser usado em estudos. Nos Estados Unidos, a única restrição é que as pesquisas só podem ser financiadas pela iniciativa privada. A lei brasileira é razoável; tem algumas limitações, mas, antes dela, estávamos no zero. Para o estágio de desenvolvimento em que nossas pesquisas estão, a lei nacional é adequada.

JC: Há um tempo, um grupo de pesquisa americano anunciou que tinha conseguido desenvolver uma linhagem de células-tronco embrionárias sem destruir o embrião. Mais tarde, essa equipe negou a informação. Essa técnica é mesmo possível?
Lygia: Depois da retificação, esse grupo voltou uma terceira vez a público e disse que eles realmente haviam conseguido desenvolver a linhagem sem destruir o embrião. Se for possível, deve ser muito difícil. Não é uma técnica que já foi incorporada pela comunidade científica. Não digo que é impossível, mas, até agora, apenas um grupo conseguiu fazer.

JC: A primeira linhagem de células-tronco embrionárias foi estabelecida há uma década. Qual a sua perspectiva para daqui a dez anos?
Lygia: Acho que em dez anos, se nos adaptarmos, conseguiremos ver no homem o que já observamos essas células fazendo em modelos animais. Acredito que num prazo de dez anos, trataremos os pacientes com células-tronco embrionárias.

Fotos

Na seqüência, imagens de um embrião, células-tronco que não se diferenciaram e células-tronco que se transformaram em neurônios. As duas últimas cedidas por Lygia.