“Nosso sistema eleitoral é ambíguo”

Maria Hermínia de Almeida afirma que a criação de uma “janela” para troca partidária traria mais flexibilidade à política do país

Maria Hermínia Brandão Tavares de Almeida é professora titular do Departamento de Ciência Política da USP. Ela é especialista em políticas públicas, reformas econômicas e políticas sociais, atuando, sobretudo, no cenário brasileiro.

Em entrevista ao Jornal do Campus, a professora opinou sobre a questão da fidelidade partidária e seus efeitos na política nacional. Maria Hermínia também comentou a proposta de reforma política que prevê o estabelecimento de um período de 30 dias a 13 meses no qual o candidato poderia trocar de partido, sem ser punido com a perda do mandato. Segundo a professora, a infidelidade partidária não atrapalha o sistema de governo do Brasil, pelo contrário, aumenta a flexibilidade.

A cientista política Maria Hermínia de Almeida afirma que política requer flexibilidade (foto: Bruna Buzzo)
A cientista política Maria Hermínia de Almeida afirma que política requer flexibilidade (foto: Bruna Buzzo)

Jornal do Campus: O princípio da fidelidade partidária é que o voto do eleitor pertence ao partido e não ao candidato. Essa idéia pode ser sustentada, mesmo com o aparecimento de coligações partidárias cada vez maiores e contraditórias?
Maria Hermínia de Almeida: O sistema eleitoral brasileiro tem muitas ambigüidades. A lista aberta de candidatos faz com que o eleitor escolha o político pela pessoa, não pelo partido. A discussão não avança em um debate geral, é preciso centrar-se em questões menores. Afinal, o sistema eleitoral é diferente nos diversos âmbitos da política nacional. As mudanças de partido não são responsabilidade só do parlamentar. Muitos pensam que os políticos trocam de legenda apenas para construir sua própria carreira, pensando em seus interesses, mas também há luta e diversas conjunturas nas coligações partidárias da esfera federal, estadual e municipal.

JC: A proibição da troca partidária forma bancadas menos coesas?
MHA: Depois das eleições, há muitas trocas de partidos devido às alianças que se criam com as bancadas governistas recém-eleitas.Estas incentivam mudanças de partido para aumentar sua base aliada.
Às vezes, acontece de as coligações no âmbito municipal serem diferentes das alianças na esfera nacional. No Brasil, não temos a possibilidade de partidos regionais. Em alguns países, onde essa situação é permitida, ocorrem diferentes escolhas nas esferas políticas regional e federal.
Acredito que a fidelidade partidária não faz muita diferença, pois os partidos têm um núcleo fiel e alguns membros recentes que são mais flexíveis.
Uma pesquisa do professor Roberto Schmitt, feita há alguns anos, mostrou que os candidatos que mudam de partido se elegem menos. O eleitor tende a punir esses políticos. Como o voto é pessoal, o cidadão vê nos candidatos que mudaram de partido recentemente certo oportunismo, e tende a não votar neles nas eleições seguintes à mudança.

JC: Como a fidelidade partidária pode afetar a bancada governista?
MHA: A fidelidade partidária pode criar problemas para a coalizão do governo. Aqui no Brasil, o maior partido ocupa apenas 20% do Congresso. É preciso fazer coalizões para governar. Incentivar os parlamentares a mudarem para partidos da base aliada é uma boa estratégia, usada por todos os partidos que estão no governo. Com o Lula, o PT cresceu, com o FHC, o PSDB cresceu. É sempre assim.
A infidelidade partidária não atrapalha tanto a política como pensa o senso comum. Se um parlamentar for forçado a permanecer em seu partido para não perder o mandato, isso apenas irá aumentar a diversidade de opiniões dentro do partido. A fidelidade partidária não favorece nenhum governo.
É preciso ter flexibilidade na política. Ela requer isso. Não se pode deixar os parlamentares muito presos. Nos Estados Unidos, por exemplo, o grupo intermediário entre os republicanos e os democratas garante possibilidades de mudanças. Esse grupo não vota sempre no mesmo partido e viabiliza a mobilidade na política norte-americana. A infidelidade partidária ocorre, na maioria das vezes, por estímulo do governo.

JC: A senhora acredita na eficiência do voto de legenda?
MHA: O voto de legenda delega poder de decisão às direções dos partidos, que montam uma lista fechada dos candidatos que preferem ver eleitos. Aqui no Brasil, utiliza-se a lista aberta que é mais cara e privilegia a escolha do eleitor. Nesse sistema, cada candidato deve convencer o cidadão de que é melhor que os outros do seu partido. Os dois modelos funcionam, é questão de preferência.

JC: Como os partidos podem atuar para manter seus candidatos na legenda?
MHA: Os partidos têm recursos para que os parlamentares votem disciplinadamente. Eles possuem mecanismos de controle de lideranças e promovem uma ordem para que os parlamentares sigam as diretrizes de seus partidos. Portanto, existe um alto grau de disciplina partidária.

JC: A reforma política apresentada no Congresso propõe a criação de uma “janela” de 30 dias a 13 meses antes da próxima eleição, ou seja, nesse período o candidato poderia mudar de partido, sem ser punido com a perda de mandato. Caso essa medida seja aprovada, quais as conseqüências para o cenário político brasileiro?
MHA: A janela seria boa para dar flexibilidade ao sistema político. Por outro lado, 13 meses antes de cada eleição é muito tempo para quem quer evitar o troca-troca. O político pode mudar de partido nesses períodos mesmo sem ser candidato. A fidelidade partidária perderia sentido, pois, considerando que há eleições de dois em dois anos, os políticos poderiam mudar de partido anualmente. Assim, a estabilidade na política engessa. Nossa política funciona do jeito que está.
Apesar dos esforços para a aprovação de medidas favoráveis à política e das esperanças de mudança, acho difícil que a reforma política saia. Este ano, ela foi dividida em temas a fim de agilizar a votação, mas não acredito que isso ajudará.

JC: Como a questão da fidelidade partidária é tratada em outras democracias ?
MHA: Em sistemas políticos mais antigos, os candidatos mudam menos de partido. No Brasil, troca-se muito de legenda porque a política é complicada. A estabilidade vem com o tempo.

JC: Alguns parlamentares e a Procuradoria Geral da República entraram com uma ação de inconstitucionalidade no STF (Superior Tribunal Federal), alegando que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) extrapolou suas funções ao estabelecer a regra de fidelidade partidária. A senhora concorda com essa reação?
MHA: Não sei se essa medida foi inconstitucional, mas creio que tais decisões deveriam ser tomadas no Congresso, para que ele não deixe de tomar decisões que são do seu âmbito. Os poderes Judicial e Legislativo estão medindo forças. O Legislativo quer provar que pode retardar a decisão sobre fidelidade partidária.