Debate: greves como instrumentos de luta?

A paralisação por parte dos funcionários da USP suscita o debate de especialistas acerca da validade do uso de greves como instrumento histórico de lutas, além da possibilidade da imposição de limites na sua utilização por funcionários públicos

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Greve: direito trabalhista fundamental, não absoluto – por Márcio André Medeiros Moraes
A greve como necessidade para melhorias universitárias – por Lincoln Secco


Greve: direito trabalhista fundamental, não absoluto

por Márcio André Medeiros Moraes

São direitos fundamentais: a saúde, a educação, a segurança pública, a liberdade de ir e vir, entre outros. Conflitante, a princípio, com estes há o direito de greve, que também é um direito fundamental do cidadão-trabalhador.

A questão se complica ainda mais quando se trata de greve nos serviços públicos e atividades essenciais.

O conflito de interesse profissional, que surge e acaba levando a uma greve que perturba a continuidade do serviço público, mexe com a vida de todo usuário dependente daquele serviço, que pode se revoltar contra o movimento.

O direito de greve no serviço público é previsto na Carta Magna brasileira de 1988, mas não é um direito absoluto e deve conciliar-se com os demais direitos supra mencionados.

Da interpretação sistemática da Lei conclui-se que servidores públicos, mesmos os estatutários, têm a prerrogativa legal de estabelecer negociação coletiva. Logo, podem firmar convenção ou acordo coletivo com o Poder Público.

A negociação funcionaria como um compromisso da administração, sendo que, para ter validade, seria primeiramente apresentado em forma de projeto de lei ao Legislativo. Só após a promulgação da lei que assimilou o pactuado é que passaria a ter aplicabilidade.

O direito de greve é social e de suma importância, assegurado pela Carta Magna, que estabelece: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

A greve é reconhecida como instrumento eficaz para fazer, forçosamente, com que a parte contrária tome decisões a partir do diálogo, predispondo-se a se sentar à mesa de negociação, a fim de estabelecer debates claros e justos concernentes aos interesses profissionais. A greve é um meio de pressão. Logo, é um contrapoder à direção do empregador, do administrador. Leva à recusa do trabalho e à nocividade.

A greve é um direito que deve ser exercido com consciência e segurança. Não se pode tolerar condutas antijurídicas em detrimento de interesses gerais da comunidade. Seu exercício deve ser garantido pelo Estado. A greve é um meio, um instrumento de luta que deve ser utilizado somente depois de esgotados todos os outros meios possíveis e predeterminados na lei para solução do conflito e sem abuso.

Os movimentos paredistas no setor público acabam sempre sendo arma contra os próprios grevistas, pois, em geral, a comunidade descontente, não culpa o governo pelos transtornos que passam em virtude de uma greve no serviço público, mas sim, os próprios grevistas.

A greve dos servidores da USP deve ter o apoio dos alunos e de toda a comunidade, pois é um direito fundamental dos servidores para obtenção de melhorias nas condições de trabalho e salariais.

Devem-se esgotar todos os meios de negociação. Se não forem atendidas as reivindicações, deve-se partir para o movimento paredista; mesmo nas atividades e serviços essenciais – desde que mantido o serviço mínimo exigido por lei, como na saúde e transporte.

A greve deve ser aprovada com o número de trabalhadores presentes na assembléia, que são os interessados em lutar pela classe, pois seria injusto serem prejudicados pela inércia dos demais, que não se fizeram presentes por comodismo, cientes da realização da assembléia para decidir sobre o movimento paredista.

Márcio A. Medeiros Moraes é doutor em Direito pela PUC-SP e PhD pela Fadusp
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A greve como necessidade para melhorias universitárias

por Lincoln Secco

Há pouco mais de vinte anos, quando as greves eram proibidas, muitos ideólogos não tinham vergonha de condená-las. Depois que a Constituição de 1988 reconheceu o direito de greve, há quem oculte sua oposição com uma pergunta: a greve é a melhor forma para se obter aumento salarial? Normalmente quem indaga não consegue indicar uma outra.

A greve é uma arma econômica dos trabalhadores. Mas ela é também política. Ela contesta os que comandam a produção, ainda que por alguns dias ou meses. Para os anarquistas do século XIX, ela era mesmo um instrumento final de subversão da ordem burguesa: a greve geral! Por fim, ela tem uma dimensão festiva, já assinalada por muitos historiadores sociais. Ela subverte a rotina do operário e introduz um caráter lúdico no seu cotidiano. Hoje, porém, isso mudou, já que o capitalismo, diante da redução da jornada de trabalho e do aumento da produtividade, se tornou mais sagaz no controle do tempo livre do trabalhador. Antes bastava convocar uma assembléia durante a greve para que uma parcela expressiva da categoria comparecesse. Agora, é mais realista acreditar que muitos trabalhadores aproveitam o tempo livre num shopping center. O cotidiano da política mudou. Nem as ruas e praças são espaços públicos como o foram até os anos oitenta. Ao perder militantes, os grandes sindicatos compensaram aquela perda usando seus recursos financeiros (hoje muito maiores) para contratar ativistas e inserir propagandas em rádio, TV ou jornal.

Essas mudanças são estruturais e não advêm apenas do acomodamento dos sindicalistas. No serviço público a questão é mais ainda complexa, pois greves são mais longas, pois os governos sobrevivem bem a elas e os funcionários (dados uma certa estabilidade no emprego e, às vezes, a indiferença de seus chefes imediatos) também suportam mais.

Nada disso, todavia, torna a greve de servidores públicos condenável. Sua greve se justifica na medida em que a queda de seu poder aquisitivo compromete a qualidade dos serviços ofertados à população.

As atuais paralisações de servidores e docentes da USP serão apoiadas na medida em que os sindicalistas entenderem a nova realidade do trabalhador aqui já citada; e na medida em que mostrarem que os aumentos salariais que (certamente) necessitam, vinculam-se a uma melhoria de seu atendimento à coletividade.

Todavia, na mais importante universidade da América Latina, uma greve apenas de servidores tem menos poder de barganha. Eles exercem, em geral, a atividade-meio. As duas categorias que exercem sempre a atividade-fim (docência e pesquisa) precisam se juntar à greve para que ela tenha um impacto real. No caso dos professores, a proposta de nova carreira docente (se tivesse sido discutida) poderia servir como parâmetro de uma greve. No caso dos alunos porque eles são a única e desinteressada vanguarda de todos os protestos dentro da nossa Universidade.

Lincoln Secco é professor de História Comtemporânea da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH-USP), graduado, mestrado e doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo
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