O Antirreitor

Anticandidato à reitoria, Chico Oliveira critica o isolamento da universidade e discute as funções e limitações da reitoria
“Os últimos reitores não atuaram no debate público, não têm posições conhecidas. Isso prejudica a sociedadede, a política brasileira e a própria USP” (foto: Yuri Gonzaga)
“Os últimos reitores não atuaram no debate público, não têm posições conhecidas. Isso prejudica a sociedadede, a política brasileira e a própria USP” (foto: Yuri Gonzaga)

Francisco de Oliveira nasceu no Recife em 7 de novembro de 1933. Estudou ciências sociais na Universidade Federal de Pernambuco – na época, Universidade de Recife.

Veio para São Paulo duas vezes, definitivamente em 1968. Ligou-se ao Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Pesquisa), importante órgão intelectual fundado durante a ditadura militar, em 1970, ficando até 1995. Ali, ganhou destaque e ingressou como professor de sociologia na FFLCH em 1988, de onde se tornou professor emérito em 2008. Aposentou-se em 1998 e, portanto, não pode ser candidato oficial à Reitoria. Assim, lançou-se como anti-candidato para “ajudar na reformulação da universidade”.

Jornal do Campus: Em quais circunstâncias o senhor decidiu ser anticandidato?
Chico Oliveira: Eu tenho uma participação ativa nos movimentos da universidade praticamente desde de que eu entrei. Fui muito ativo em 2007, quando houve a greve da ocupação, e nesse ano. Assim, desenvolvi uma relação muito importante com o Sintusp, o sindicato dos trabalhadores da USP. Nós queríamos fazer algo que puxasse o movimento do 1º semestre para reformar as estruturas da USP. A partir dessas conversas, e com os professores Ruy Braga, do meu departamento, e Luís Martins, da ECA, nós fomos amadurecendo essa anticandidatura como uma forma de protesto. Não para tentar quebrar as estruturas da USP em uma eleição, mas para questionar e num prazo mais longo ajudar na reformulação da universidade.

JC: Para colocar outras possibilidades no debate…
CO: E para chamar a atenção externa. A USP é muito ensimesmada. Os movimentos acontecem, a sociedade toma pouco conhecimento, a imprensa tem dado um tratamento fraco à universidade. A Folha, por exemplo, antes tinha uma editoria de educação, inclusive com nomes importantes como Perseu Abramo. Hoje não tem mais.

JC: Em relação a isso pode-se colocar a questão da missão universitária para com a sociedade. A USP tem desempenhado seu papel político e social adequadamente?
CO: Socialmente a USP é muito importante. Ela presta serviços para a população de São Paulo e até para fora. A gente se esquece, mas o Hospital das Clínicas é da universidade. É da Faculdade de Medicina, mas tornou-se o grande hospital público da cidade de São Paulo e do estado de São Paulo. No hospital de Ribeirão Preto é a mesma coisa. O Hospital Universitário (HU), destinado à universidade, também é um hospital público que atende uma grande região.

JC: E politicamente?
CO: Politicamente, a USP não tem participado dos grandes debates nacionais. Isso é ruim, pois ela tem quadros excelentes tanto entre docentes quanto entre funcionários e alunos, podendo ter um papel de relevância de discussão pública no Brasil. Você já ouviu, nos últimos anos, algum tema importante da sociedade brasileira sendo discutido na USP? Não, porque ela se retraiu e a sociedade também não conhece bem. Se você falar de universidade para a grande massa do povo, ela não tem muita idéia. Mas a quem serve o Hospital das Clínicas? Serve ao povo, com todas as letras. É claro que ali é um espaço de aprendizado, porém nesse processo se presta um serviço da maior relevância. Mas ao entrar nas Clínicas, as pessoas não pensam estar entrando em uma unidade da USP.

JC: E como aumentar essa participação?
CO: Em primeiro lugar, depende muito de funcionários, docentes e estudantes. Se eles estiverem dispostos a intervir no debate público, ajudam a levar a universidade. De outro lado, precisa-se criar fóruns especiais onde se possa fazer as discussões que interessam à sociedade. O papel do reitor nesse caso é importantíssimo. Os últimos reitores da USP não atuaram no debate público, não têm posições conhecidas. Depois de Goldenberg (José Goldenberg, reitor de 1986 a 1990) não houve reitor que tenha tido atuação pública relevante. Isso prejudica a sociedade, a política brasileira e a própria universidade.

JC: Voltando às eleições. O senhor se diz a favor das eleições diretas. Algumas pessoas dizem que esse tipo de voto não considera o fato de o professor permanecer na universidade por mais tempo que o aluno e que nem sempre valoriza pontos acadêmicos no processo de escolha. Qual a sua resposta?
CO: Sou a favor de eleições diretas e universais. O sistema atual é de castas. É o sistema dos Estados Gerais, como na França antes da Revolução Francesa. Os grupos ficam congelados, professores com uma dada porcentagem na votação e alunos e funcionários com porcentagens bem menores. É um sistema que congela previamente o conflito. Daí não pode sair nenhum consenso benéfico à universidade. É preciso obrigar – sim, “obrigar” é uma palavra dura –, mas é preciso criar um sistema que obrigue que se preocupe com o problema da outra categoria. Isso só a eleição direta e universal faz. Claro que isso não assegura nada. Em política não se prescreve antes de acontecer. Mas ela obriga que haja um consenso de baixo para cima e não de cima para baixo como agora.

JC: E em relação à composição dos conselhos, congregações, enfim, dos órgãos de poder?
CO: Eu fui chefe do departamento de sociologia por seis meses para completar o mandato de um colega que se aposentou e não pude participar de nada. Um chefe de departamento nas humanidades, que são desprestigiadas na USP, não decide nada de importante. Parece tudo democrático, há colegiados em todas as instâncias, mas é para decidir sobre o pão-de-ló. Não tem muita relevância. É preciso apanhar a experiência daqueles que estão na universidade, que a conhecem e vivem nela para que numa estatuinte possa-se achar uma nova formulação.

JC: Muitos argumentam que uma estatuinte é desnecessária, podendo haver apenas uma reforma do estatuto. Qual a sua resposta?
CO: O sistema é pré-congelado. Está tudo prescrito. No máximo se dará um balé, troca de figurinhas, mas não passa disso. Reformas mais profundas nesse sistema não saem, porque os interesses corporativos das três categorias vão se defender. Deve haver um sistema em que a interlocução seja a única forma de convencer o outro.

JC: A estrutura atual de poder, quem detém o poder, não quer se reformar…
CO: Não, não quer. Estão muito confortáveis. A forma de mudar, que alguns dirão utópica, quixotesca, é essa: sair fazendo campanha pela ampliação da democratização. Mas é pouco provável que o façam. Uma reforma de estatuto aqui, ali…

JC: Muito tem se falado em diálogo nesse processo eleitoral. Que canais pode-se criar para que ele de fato aconteça?
CO: Na última semana, fomos com funcionários tentar obter uma audiência com a reitora porque ela está efetivamente perseguindo funcionários. Ela está desencavando processos administrativos que já haviam sido arquivados, como contra o Magno (de Carvalho), por exemplo, uma liderança importante. Esperamos uns 30 minutos no mínimo para entrar e ela não apareceu. Sempre diz que está fora. Parece haver canais de comunicação e diálogo, mas em grande medida são falsos. Em 2007, fui também lá. A reitora não recebia nem alunos, nem funcionários, nem a Adusp (Associação dos Docentes da USP).

JC:O que faltou no primeiro semestre para a situação chegar ao ponto que chegou, com o episódio de violência envolvendo a polícia militar?
CO: Faltaram à Reitoria – assim como à estrutura representativa da USP –, em primeiro lugar, canais de interlocução, de discussão e conflito. Faltou à gestão atual, em segundo lugar, experiência de conflito. A sociedade capitalista é do conflito, ela se faz e se move assim. “Uma candidatura harmoniosa vai eliminar os conflitos”, não vai. E se eliminar é pior. A cultura democrática á do conflito. Faltou experiência democrática. Faltou o Conselho Universitário assumir suas responsabilidades.
Ele não serve para ficar na moita e na hora dar um voto. Ele tinha que ter sido mais ousado, deveria ter avocado a si o tratamento das questões que a Reitoria não conseguia resolver. Faltou à sociedade paulista especificamente maior apoio à universidade, para não chegar lá apenas na hora em que a polícia vai bater. Faltou ao governo do estado a capacidade política para avocar a si a resolução desse conflito e não deixar com a polícia militar. Faltou a todos os setores da sociedade a visão mais complexa que se requer da universidade, que não é coisa simples.

JC: Como o reitor pode incentivar para que este debate sobre a universidade não fique restrito aos momentos eleitorais?
CO: A Universidade Federal do Rio de Janeiro tem um fórum permanente de debates para tratar de questões importantes nacionais, do estado do Rio e da própria universidade. É preciso criar instâncias como essa. É preciso que o Conselho Universitário torne-se uma espécie de parlamento onde se possa debater questões, onde uma representação estudantil que não esteja finada em quatro ou cinco estudantes possa abrir discussões, fazer movimentos. A universidade é o lugar da palavra por excelência e se a palavra é muda significa que algo não está funcionando, evidentemente.

JC: O conceito de universidade é muito mais do que um conjunto de faculdades num mesmo espaço. Deve haver integração entre as unidades, mas isso vem ocorrendo pouco na USP. Como o reitor pode contribuir para aumentar esse contato?
CO: Pode contribuir muito, mas não só ele. O reitor não é nenhum mágico porque essa estrutura de governo da USP caça até mesmo os poderes dele. Eu não gostaria de ser reitor nessa estrutura, ali você só tem problemas e não tem como resolvê-los. As grandes unidades dão pouca importância para a Reitoria, se viram por meios próprios, a medicina, a politécnica, o direito, mesmo a FEA. São as carreiras liberais de maior prestígio na sociedade e, por isso, os professores que são também profissionais liberais têm o campo aberto. A participação como docentes às vezes é muito pequena, pois dão aula e trabalham em escritórios

JC: E como incentivar maior participação nesses lugares?
CO: Isso só é possível forçando-os a imiscuir-se nos assuntos da universidade. Não agarrando pelo cangote, mas fazendo com que a decisão sobre a Faculdade de Medicina, por exemplo, passe também por outros fóruns da universidade. Aí se prestará atenção. ‘Ah, vão meter o bedelho aqui? A gente tem, no mínimo, que evitar’. Para evitar precisa-se entrar em discussão e diálogo não é passar a mão na cabeça. O mesmo vale para os estudantes, ‘Ah, eles querem tirar o bandejão de nós? Vamos lá mostrar, então, que o bandejão é uma necessidade e um direito nosso’. Deve-se criar um sistema em que a interlocução seja vital, e não uma perfumaria.

JC: O senhor é contra a lista-tríplice enviada para que o governador escolha o reitor?
CO: Não sou contra, afinal de contas a USP faz parte da sociedade paulista. A interlocução deveria ser mais freqüente com o governador, com a Assembléia Legislativa, deveria ser, ouso dizer, obrigatórios. Como o governador tem poderes acima da universidade ele intervém, às vezes, desastrosamente. Isso não pode acontecer de forma autoritária, é preciso criar um outro ambiente em que essas discussões possam de fato ajudar os dois lados. Agora foi lançado, por exemplo, esse programa de ensino à distância. Deveria ter havido antes uma longa discussão com as três universidades públicas do estado. Há um enorme acervo de conhecimento do qual o Estado se utiliza muito pouco.

JC: E qual a sua opinião em relação ao ensino à distância?
CO: Sou contra. Quero usar a tecnologia, mas sob os critérios públicos do ensino. Dizem que o ensino à distância é uma ferramenta de democratização, já “que não vamos jamais colocar todos na universidade, esse é o meio”. Não, não é. O ensino à distância não faz as vezes do ensino presencial, é fetiche pela tecnologia. Deve haver mais e melhor ensino presencial. Como já foi dito, a universidade é maior que a soma de suas partes. Conheço o Brasil todo, já rodei do Amazonas ao Rio Grande do Sul. Conheço os estados mais pobres e quando há uma universidade pública no local a diferença é marcante. Eleva-se o nível do debate, a compreensão dos problemas, dá outra qualidade à discussão pública.

JC: Como o senhor vê a reforma da carreira docente?
CO: Não quero falar muito, pois não sou um especialista nisso. Um reitor – na verdade, sou anti-reitor – não precisa ser especialista e conhecer a carreira docente de forma técnica. Mas a própria universidade tem longa experiência nisso. Pode-se convocar setores da USP que conhecem o tema – e não apenas os professores, também alunos e funcionários. Não tive problemas em relação à carreira, pois quando entrei na USP já era um acadêmico de prestígio fora da universidade. Mas outros têm, a carreira está praticamente entupida.

JC: E em relação à orçamento, fundações, patrocínios?
CO: Depois da autonomia financeira dada pelo Orestes Quércia (governador de 1987 a 1990) – que é um decreto, nem uma lei é – todo mundo ficou satisfeito e ficou-se por aí. As universidades precisam de muito mais e é falsa a colocação que defende que se houver mais dinheiro para a universidade não sobrará para o ensino fundamental e médio. Quem forma os professores do ensino fundamental e médio? A universidade. Se ela não formar, o ensino fundamental e médio serão de péssima qualidade, o que, aliás, é o problema que há desde que se começou uma política anti-pública, em que os colégios experimentais do estado de São Paulo foram arrasados. Assim, não é possível chegar à universidade através do ensino médio público, porque não há mais ensino médio público.
A universidade precisa de muito mais recursos. Recorrer ao setor privado brasileiro é uma ficção, pois ele não colabora com o ensino público. Ele aproveita-se dos recursos das universidades públicas e retribui muito pouco. Não sou avesso à prestar serviços ao setor privado, mas ele deveria pagar um valor que honrasse a qualidade do serviço fornecido. Além disso, esses recursos introduzem um desequilíbrio entre os vários setores da universidade. Quem pode ter convênio com o setor privado vive bem e quem não pode que se vire com os recursos da universidade. Sou do setor de humanidades e conheço bem isso.
A Folha de São Paulo realiza pesquisas de opinião pública recorrentemente para qualquer coisa. Ela tem seu departamento de pesquisa, o DataFolha, assim, não encomenda à universidade. Poderia encomendar. Todos os laboratórios praticamente socorrem-se das faculdades de medicina para fazer seus testes de medicamentos, para equivalência de elementos, e pagam mal por isso. Podiam pagar melhor. Estive na banca de uma moça que defendeu a tese sobre o Laboratório Nacional de Luzes Síncroton, um laboratório fora da universidade, embora a maior contribuição para ele tenha vindo da Unicamp. É um setor de vanguarda de pesquisa científica e tecnológica que está fora da universidade. A pesquisa de vanguarda está margeando a universidade e isso é um equívoco.

JC: E a terceirização de serviços?
CO: É falso que a terceirização barateia os custos. Mesmo no setor privado, a terceirização os aumenta. Ela serve para precarizar trabalhadores, que não têm direito nenhum e se sentem inseguros. A USP tem um enorme número de funcionários terceirizados. Eu sou do conselho fiscal do meu condomínio e terceirizamos os serviços do prédio. Saiu mais caro. Então, demos um passo atrás e todos os funcionários são nossos funcionários. Não construímos o paraíso para eles, mas é melhor, pois no serviço terceirizado a rotatividade é enorme, piora a qualidade do serviço e é mais caro. Quais são os componentes de custo de uma universidade? É sobretudo pessoal e nem pode ser de outra forma. A universidade vive de pessoal. “Ah, mas já é 80% do orçamento”, mas é isso mesmo, em uma universidade é assim.

JC: Diz-se que uma anti-candidatura poderia ofuscar um candidato mais próximo das causas que ela própria defende. Qual sua visão sobre isso?
CO: Não vejo assim. Ninguém é ingênuo na USP, nem em canto nenhum. Todo mundo sabe que não posso ser eleito, não podendo, portanto, roubar votos de ninguém, especificamente do Francisco Miraglia, que é o candidato apoiado pela Adusp. Ninguém vota em mim. Esse nosso movimento conseguiu tirar a Adusp da posição em que ela estava. Agora, ela está correndo atrás do prejuízo, realizando debates em todos os campi da USP. Essa anti-candidatura está os ajudando e não o contrário.

JC: Quer dizer algo mais?
CO: Espero que a entrevista possa ajudar nesse processo de debate. Cada vez que se entra num conflito em que não se vê a luz no fim do túnel os alunos perdem trinta dias de aula, os professores têm que repô-las, funcionários saem prejudicados porque se envolvem também nessas disputas, a Reitoria fica desprestigiada e sem credibilidade. Há uma crise estrutural. A universidade não soube crescer, não soube estruturar-se da mítica “Maria Antônia”, quando havia 3000 alunos – hoje há 70000. A escala é completamente diferente, a complexidade dos problemas é outro. A interlocução física era outra. A universidade pode melhorar. Mesmo em medicina, que é um curso caro, demanda do aluno horários livre de manhã à noite, o perfil do aluno mudou. Há mais alunos do setor público, mais DNA brasileiro. O setor de humanidades é o retrato da sociedade brasileira, há negros, mulatos, asiáticos, judeus. Mas ainda há muito ainda o que melhorar. A USP não soube passar de universidade de elite para universidade de massa e é preciso passar. Ou nós encaramos os problemas da democracia à serio, ou ficamos fazendo de conta.