“Lei da Palmada” retoma dilemas históricos do Direito

Professor da Faculdade de Direito da USP fala sobre os limites da legislação frente aos costumes estabelecidos

Grande parte dos que se opõem ao projeto de lei que busca proibir o castigo físico contra crianças dizem que se trata de uma intervenção indevida do Estado na vida familiar. Mas a lei não deve justamente ter relação direta com a vida das pessoas? Se sim, é possível que a legislação modifique hábitos culturais como a “palmada” que os pais dão nos filhos durante alguns momentos ao longo da criação?

Alysson Leandro Mascaro, professor da Faculdade de Direito da USP, acredita que sim. Afinal, o direito tende não a refletir o senso comum, mas a promover avanços em relação a ele. Leia, a seguir, seu depoimento na íntegra:

“Toda vez que o direito toca em questões que incomodam os costumes arraigados, levanta-se uma polêmica sobre os limites da legislação em face da cultura e das práticas socialmente estabelecidas. Alguns consideram que o direito não pode interferir em questões íntimas da relação familiar, como a educação que os pais dão para os filhos. Para um certo senso médio estabelecido atualmente, é normal e mesmo justo algum ato de violência corporal em benefício da educação das crianças. Pelo mesmo senso comum, não é ruim que o filho comece a trabalhar ainda criança e, a julgar por uma determinada opinião pública, a penalização de adolescentes deve ser aceita. Reforçando esses argumentos está até mesmo a tradição. Os atuais pais assim foram educados pelos seus pais. Mas, em todos esses casos, o direito contemporâneo tem se insurgido contra o senso comum: o Estatuto da Criança e do Adolescente e as normas jurídicas correlatas ao tema claramente avançam em relação à opinião média.

Não há nada de juridicamente insólito em tal avanço. O direito nunca se constitui como exata expressão da opinião média. O Estado, por meio do Poder Legislativo, embora espelhe um horizonte político da sociedade ao momento da escolha dos representantes, recebe do povo, dentro de determinadas balizas normativas, um poder soberano de legislar, e isso a favor ou mesmo contra o senso comum. Vejamos a história dos últimos séculos: o direito nas sociedades contemporâneas se estabeleceu contra muitas relações sociais arraigadas. No campo político, a tradição e a cultura eram absolutistas, e o direito organizou a moderna democracia. No campo penal, o direito é contra a lei de talião e proíbe a pena de morte, e talvez a vontade histórica direta do povo não fosse redundar, por si só, em tais normativas estatais. Mas também se dá o inverso: a multidão de despossuídos dos meios de produção encontra no direito uma barreira contra a sua libertação e sua auto-afirmação. O capitalismo se estrutura também por meio das normas jurídicas, garantido pela defesa estatal da propriedade privada. A fome de muitos, na história, foi legitimada juridicamente. E da mesma maneira como o direito não se afirmou como uma opinião média do povo no plano econômico, também assim não se limita no campo dos costumes sociais.

O Estado perpassa todos os recônditos da vida social contemporânea. Ao pensamento conservador, quando se trata da proteção ao capital, o direito deve ser tido como sagrado. Mas se o direito avança no plano político, econômico ou social, deve então ser contido. Trata-se de uma contradição no uso do direito. O discurso que quer manter a violência contra a criança e o adolescente, sob o argumento de que os costumes sociais assim o são, permitiria dizer que anos a fio de luta libertária do povo, quando contra a exploração econômica e política, fariam um costume válido, ainda que distinto das proibições jurídicas estatais. Mas isso não se afirma. O conservadorismo se apóia nas leis, desde que elas confirmem a conservação: a hipocrisia do pensamento jurídico variável conforme a ocasião reside no fato de que o papel do direito tem sido aceito para reiterar a reprodução das explorações, mas tem sido rechaçado para a evolução das relações sociais.”