Projeto de lei põe em foco violência à criança

Baseada em proposta de 2003, a “Lei da Palmada” encaminhada ao Congresso divide pais, psicólogos, juristas e ativistas sociais

Em julho deste ano, o presidente Luís Inácio Lula da Silva enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei que proíbe castigos corporais e tratamento “cruel e degradante” contra crianças e adolescentes, o que incluiria palmadas, puxões de orelha e outras intervenções físicas consideradas aceitáveis por muitos pais. O projeto altera o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), o ECA, que neste ano completa 20 anos de existência.

O projeto retoma a proposta criada em 2003 pela deputada gaúcha Maria do Rosário, há quatro anos parada na Câmara. Na época, Maria do Rosário fez uma jornada nacional em defesa da dignidade da criança ao lado das professoras Maria Amélia Azevedo e Viviane Guerra, do LACRI-USP (Laboratório de Estudos da Criança), às quais credita a ideia de seu projeto de lei.

Por tratar de castigos físicos em geral, a deputada rejeita a denominação “Lei da Palmada”. Segundo ela, o projeto aprimora o Estatuto da Criança e do Adolescente, que “deixa a questão da violência muito em aberto”.

Novas necessidades

(infográfico)A proteção à criança é colocada como prioridade pelo professor Paulo Sérgio Pinheiro, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP. Segundo ele, as crianças são o único grupo no país que ainda não alcançou igual proteção contra agressões.

Assim, o projeto se justifica a partir da noção de que “as crianças têm exatamente o mesmo direito de ver respeitadas sua dignidade humana e sua integridade física como os adultos, e esse respeito precisa estar traduzido em lei”. Pinheiro explica que “não se trata de retirar a autoridade dos pais e da família nem de criminalizar pais, mas de promover formas positivas, não violentas de disciplina, muito mais eficazes que dar palmadas a torto e a direito”.

Questões jurídicas

Roberto João Elias, professor aposentado da Faculdade de Direito da USP, explica que a nova lei vem reforçar o que o ECA já proíbe. A punição para casos mais graves, segundo ele, é a perda do pátrio poder, isto é, a autoridade legal que o pai tem sobre a criança.

Ele destaca, ainda, que a nova lei não se restringe ao ambiente doméstico: aplica-se também a instituições prisionais e de atendimento público ou privado e escolas. Não há estatísticas precisas sobre em quais lugares há mais casos de violência infantil: os dados existentes resultam de trabalhos pontuais de organizações e instituições que trabalham com pesquisa sobre violência doméstica e atendimento a crianças vítimas de violência.

Se a lei for aprovada, o Brasil será o 29º país a adotar legislação específica para proibir os castigos corporais contra crianças e adolescentes. O pioneiro nesta iniciativa foi a Suécia; na América Latina, países como Uruguai e Venezuela já sancionaram leis neste sentido.

Contrariando hábitos

Os críticos do projeto de lei argumentam que ela interfere injustamente na vida privada. Alysson Leandro Mascaro, professor da Faculdade de Direito da USP, discorda. “Toda vez que o direito toca em questões que incomodam os costumes arraigados, levanta-se uma polêmica sobre os limites da legislação em face da cultura e das práticas socialmente estabelecidas. Para alguns, é normal e mesmo justo algum ato de violência corporal em benefício da educação das crianças. Reforçando esses argumentos está até mesmo a tradição. Os atuais pais assim foram educados pelos seus pais. Mas o direito contemporâneo tem se insurgido contra o senso comum: o Estatuto da Criança e do Adolescente e as normas jurídicas correlatas ao tema claramente avançam em relação à opinião média”, explica. (leia o depoimento de Alysson Leandro Mascaro, professor da FD)

Segundo o professor, este conflito é natural: muitos avanços jurídicos hoje considerados direitos fundamentais foram controversos à época de sua introdução. “Ao pensamento conservador, quando se trata da proteção ao capital, o direito deve ser tido como sagrado. Mas se o direito avança no plano político, econômico ou social, deve então ser contido. Trata-se de uma contradição no uso do direito”, completa.

“Disciplina positiva”

Pinheiro explica que somente a lei não vai acabar com a violência infantil, tampouco pais e mães podem ser responsabilizados por desconhecerem práticas não violentas de educação. Segundo o professor, “a reforma legal precisa ser precedida e acompanhada por intensa promoção de práticas de relações positivas com as crianças”.

Há um conjunto de orientações de “disciplina positiva” que visam entender o pensamento das crianças e buscam resolver problemas entre pais e filhos. Para Pinheiro, faz parte da responsabilidade do governo criar estruturas de formação neste sentido. O professor afirma também que o conjunto de ações de investimento e prevenção, como educação dos pais e professores, mecanismos para ouvir as vítimas e a própria legislação sobre a criança, é a forma mais efetiva para reduzir e eliminar este tipo de violência. “As raízes da violência nas crianças e nos futuros adultos está na violência sistemática dos adultos contra eles. Logo, é do maior interesse dos governos e de toda a sociedade que essa violência contra as crianças autorizada por lei seja eliminada”, conclui.