A USP pode abdicar de cursos que não têm espaço em instituições privadas?

O Conselho Universitário aprovou documento que sugere a extinção de carreiras de baixa demanda no vestibular, como os cursos de música e licenciatura em geociências. Tal medida põe em xeque o papel da Universidade de cultivar um tipo de conhecimento que não é encontrado em faculdades pagas.
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A função da USP é produzir coisas novas. Senão a gente só ia ter engenheiro e advogado – entrevista com Colombo Celso Gaeta Tassinari, diretor do IGc
A USP tem que crescer, mas também tem responsabilidade de manter qualidade – entrevista com Telma Maria Tenório Zorn, pró-reitora de graduação


A função da USP é produzir coisas novas. Senão a gente só ia ter engenheiro e advogado

Colombo Celso Gaeta Tassinari é diretor do Instituto de Geociências.

Jornal do Campus: Quando o senhor ficou sabendo da proposta do Conselho Universitário de incentivar a reformulação dos cursos?
Colombo Celso Gaeta Tassinari: O documento entrou na pauta da última reunião, mas foi encaminhado às unidades há algum tempo, pra que elas se manifestassem a respeito. Não houve grande contestação da nossa parte. Ele trata de linhas gerais sobre a criação e a reformulação de cursos na USP, podendo ser fechados ou não. Essa possibilidade existe mesmo sem o documento. Qualquer unidade tem o poder de propor o fim de um curso para o Conselho Universitário.
Em princípio, sou contra fechamento de cursos, porque uma universidade pública tem que formar quase todas as profissões que conseguir. Mesmo que tenha uma baixa procura, você tem que formar, porque nós não visamos lucro.

JC: A própria pró-reitora afirmou que a decisão fica a encargo das Unidades.
CCGT: O fechamento de um curso emana da comunidade para o Conselho, não o contrário. Não pode simplesmente vir de cima pra baixo.

JC: O incentivo financeiro às mudanças não é um estímulo de cima pra baixo? As transformações não deveriam vir de baixo pra cima?
CCGT: A busca da atualização faz parte do progresso de um conhecimento. Obviamente quando você mexe no curso, isso pode significar diminuição ou aumento dos custos. No caso de movimentação de currículo, muitas vezes seu quadro de professores não atende determinadas áreas emergentes. Você tem que contratar gente nova, com especialização naquilo. Encaro isso um apoio da reitoria às modificações. Se você não quiser fazer, não vai ter a verba cortada, penalização. Se for fazer, tem a possibilidade de conseguir apoio pra essa modernização.

JC: O senhor disse que o Instituto de Geociências não mandou muitas modificações, sugestões pro documento.
CCGT: Nesse documento não, primeiro porque não estamos criando cursos novos. E nós acabamos de reformular o currículo da licenciatura.

JC: Vocês reformularam o currículo esse ano?
CCGT: Ano passado. A licenciatura em geociências é um curso novo, tem seis anos, por aí. Agora nós deixamos o currículo mais leve. Os conceitos são os mesmos, só diminuiu a carga horária de algumas disciplinas, adaptações foram feitas a partir de discussões com professores, alunos, professores de outras unidades.

JC: Uma demanda que o próprio curso exigia.
CCGT: Isso. E ainda temos o nosso curso tradicional de Geologia, que em breve deve sofrer uma mudança curricular.

JC: Aparentemente as reformas necessárias à licenciatura de geociências, que no campus do Butantã teve a menor relação candidato/vaga na Fuvest 2010, já estão sendo feitas.
CCGT: Elas já foram feitas e vão ser avaliadas no ano que vem. Faremos quantas forem necessárias, pelo menos enquanto eu for o diretor aqui. Não dá pra haver um currículo estanque, porque as próprias necessidades da sociedade mudam. Agora, baixa procura pra mim não é motivo pra se fechar um curso. Se você olhar a lista da Fuvest dos cinco últimos anos, todas as licenciaturas são os que tem mais baixa procura. Qual o problema? São os cursos? Não, são os baixos salários.

JC: Então o problema da baixa demanda não é a qualidade dos cursos, nem uma grande quantidade de vagas.
CCGT: De jeito nenhum. Enquanto não se valorizar a carreira de professor secundário não haverá procura. A única justificativa pra fechar um curso seria ele ser englobado por algum outro de maior abrangência ou então se, simplesmente, for zero o número de alunos. O problema é que ninguém quer ser professor no Brasil. Isso então seria justificativa pra fechar o curso? Claro que não. A USP vai parar de formar professor? Não vai. Isso é o mínimo que a gente tem que dar de retorno pra sociedade. O azar é que ninguém quer. Mas eu duvido muito que seja fechado algum curso de licenciatura.

JC: Se a licenciatura de geociências fosse ser criada hoje, com esse documento, seria mais difícil? Porque deveria se avaliar a empregabilidade e o “impacto social”.
CCGT: A função de uma universidade como a USP é criar coisas novas, que se não forem criadas aqui, nunca o serão. E o mercado tende a ter certa resistência em relação a coisas novas, até assimilá-las. Nossa licenciatura teve uma resistência, mas o pessoal que sai já está conseguindo empregos que foram criados a partir desse curso. A universidade tem que criar o curso. Pode ser que não alguns não dêem certo, mas faz parte da função da universidade criar coisas novas. Senão a gente só ia ter médico, engenheiro e advogado.

JC: De onde vêm os cursos novos? Às vezes a sociedade não sabe que precisa deles.
CCGT: É papel da universidade de detectar esses nichos. No caso específico do nosso curso, isso foi detectado da seguinte maneira: nos anos 90, o curso de geologia estava com a procura baixa, e constatamos que o motivo era porque os alunos de ensino médio sequer sabiam o que era geologia. Partimos aos colégios pra dar palestras, mostrar o que era a profissão. Nesse processo percebemos que o conhecimento de geologia no colegial era zero. Quem dava aula sobre o assunto normalmente era o pessoal de geografia, que não tem uma formação específica. Junto à questão ambiental que estava surgindo como uma componente bastante forte, consideramos que professores ou educadores na área de geologia e meio ambiente pudessem ser uma coisa importante. Aí foi criada a licenciatura, e com isso descobrimos outras atuações, em empresas, prefeituras. Ou os professores percebem que algo é necessário, ou o mercado descobre e cobra da universidade aquilo – são as duas mãos. No nosso caso saiu daqui.

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A USP tem que crescer, mas também tem responsabilidade de manter qualidade

Telma Maria Tenório Zorn é pró-reitora de graduação da USP.

Jornal do Campus: As resoluções aprovadas pelo Conselho Universitário têm prazo previsto para ser implantadas?
Telma Maria Tenório Zorn: Desde o começo da gestão havíamos anunciado a preocupação com a graduação. E uma pergunta para a Pró-reitoria de graduação foi se havia projetos para ampliação de vagas, e eu disse que não. Não significa que novos cursos não sejam criados. Implica refletir sobre o quanto a gente poderia crescer sem prejudicar a qualidade que tem. A USP tem que contribuir com o crescimento do ensino superior no Brasil, mas ela também tem responsabilidade de manter a qualidade.

JC: A própria pró-reitora afirmou que a decisão fica a encargo das Unidades.
TMTZ: O fechamento de um curso emana da comunidade para o Conselho, não o contrário. Não pode simplesmente vir de cima pra baixo.

JC: A senhora considera que houve debate suficiente sobre as resoluções?
TMTZ: A primeira versão desse documento saiu no começo de maio. Começamos a trabalhar no final de março, logo depois do primeiro Conselho Universitário. Em abril, voltei a mandar nova correspondência para as unidades. Então, 18 enviaram respostas, as demais não se manifestaram. Mas os seus presidentes, no Conselho de Graduação (CoG), votaram favoravelmente. Significa o seguinte: não tinham nada para acrescentar. Essa foi a interpretação que a gente deu.

JC: O documento diz que os cursos mais atingidos pela reformulação seriam os menos concorridos ou os de baixo impacto social. O que o Conselho considera um curso de baixo impacto social?
TMTZ: É difícil… eu acho que a expressão não foi muito feliz. A formação na USP é cara e você quer que quem se forme aqui vá exercer uma profissão e possa sobreviver com ela, além de contribuir com a sociedade. Agora, dentro de um contexto da USP, que foi criada com base humanística e se mantém forte na filosofia, na educação, o impacto social não pode ser encarado dessa maneira mercantilista. Você sabe que o músico, por exemplo, tem uma importância impressionante na cultura. Mas infelizmente, num país pobre como o nosso, ainda não temos espaço para desenvolver mais este tipo de conhecimento e ter uma formação mais complexa, multidisciplinar. Espera-se muito num país como o Brasil, em desenvolvimento, que a Universidade possa contribuir com o crescimento da produção de alimentos, da construção e da tecnologia. Mas de maneira alguma seria a ideia que o curso com menos impacto social não tenha que ser mantido aqui, cultivado e preservado.

JC: Mas existe a possibilidade de eliminação de cursos?
TMTZ: De jeito nenhum, mesmo porque a eliminação tem que ser decidida pela unidade. A Pró-reitoria jamais pode eliminar um curso. Podemos dizer a direção, o caminho que gostaríamos que a unidade tomasse, mas não há intervenção, nem do reitor nem do pró-reitor.

JC: A partir das diretrizes descritas no documento, cada unidade vai ter autonomia?
TMTZ: Sim, completa, é ela que vai decidir. O reitor deixou bem claro que as iniciativas devem caber à própria unidade. Agora, outra coisa, dentro disso, é o seguinte: uma coisa é o impacto social, que eu estou corrigindo nessa direção para que fique bem claro. Outra coisa é a preocupação com a demanda no vestibular. Porque essa é uma universidade pública, custa muito caro pra sociedade. Então é muito importante também que você ajuste o número de vagas à demanda. Uma vaga vazia é uma vaga improdutiva, e é uma vaga que está custando, porque o docente está lá. Então, você pode entender que deve haver uma preocupação com o equilíbrio entre a oferta e a demanda, mesmo porque, quanto menor a demanda, menor a nota de entrada na USP. É uma coisa que tem que ser bastante equilibrada: se essa demanda for muito pequena, você vai diminuir a qualidade dos alunos que vão ingressar. Isso não é bom.

JC: Mas isso vai ser pensado para cada curso? Por exemplo, o curso de licenciatura em ciências da natureza tem relação candidato/vaga baixíssima, mas busca formar professores para a rede pública, ou seja, tem impacto social.
TMTZ: O curso de ciências da natureza tem impacto social, mas tem 36 vagas ociosas por ano. O problema da licenciatura ultrapassa um pouco os muros da Universidade. Nem por isso não temos obrigação de atuar, porque a Universidade, para se alimentar depende do que está lá fora. E é claro que é muito difícil atrair quem queira ser docente no ensino médio. A gente vai ter que ver de que maneira o problema das vagas ociosas não se perpetua, porque se você mantiver essa prática durante muito tempo, vai ter docentes permanentemente subocupados.

JC: Não é preocupante deixar de lado as licenciaturas, que são cursos que você provavelmente não encontraria em universidades particulares?
TMTZ: É, mas que ano após ano, depois de um esforço grande, você não consegue preencher nem metade das vagas, como no caso das ciências da natureza. Que tenha baixa procura ainda dá para suportar, mas ter metade das vagas não ocupadas… você tem de repensar isso. Não excluir, mas procurar reformular, não dá para fazer de conta que não está acontecendo.