Não é hora para caretice

Imaginei exercer todas as funções de um homem sobre a terra, até mesmo a de Jesus Cristo, caso fosse preciso. Aliás, já exerci esse papel. Em um drama teatral. Na Sexta-feira da Paixão. No tempo em que eu tinha farta cabeleira, é claro. Rio de mim mesmo nessa tarefa. Riam também, por favor, só assim tem graça. Nunca estive preparado para a missão ombudsman, ofício que sempre debochei quando estava voltado contra mim, repórter por muitos anos da Folha de S. Paulo. Uma das melhores recordações que eu tenho sobre o tal cargo sagrado é uma inscrição anônima, óbvia, no banheiro da mesma Folha: “Caguem à vontade, o ombudsman está de férias”. Inesquecível.

A exemplo do Grouxo Marx, não acredito em jornal que me convida para o nobre exercício de vasculhar seu conteúdo e suas vírgulas. Aliás, não tratarei sobre esses pormenores virgulosos. Chamem o Pasquale. Ficarei no filosófico, no anárquico, no que acho que um candidato a jornalista deve ter na cabeça.

Ao número 376, ano 30, do glorioso JC:

  1. Que publicação mais séria, amigos gutenberguianos. Quanta caretice. Imaginem quando vocês chegarem no mercado! Que tal inventarem, delirarem, enquanto é tempo? Ou são tão bem pagos assim que não querem, desde já, arriscarem nada?
  2. USP Leste pode perder 330 vagas. Manchete até razoável e a reportagem relata protestos gerais. Não há, porém, um aluno ouvido. Somente “autoridades”. O curso presta ou não (no caso mais grave Obstetrícia), há razões para desistências de estudantes, como informa um dos integrantes da comissão do mesmo? Entendo que o espaço era pequeno, essa é a grande queixa do jornalista para o resto da vida, mas poderia ter descido para o mundo mais real. Há interesse de fato do governo estadual em manter o campus da ZL, por que esvaziá-lo? Preconceito? Algum caso anterior penalizando o mesmo campus? Fiquei curioso.
  3. No texto “Professor da FCFRP culpa orientanda por plágio”, a doutoranda acusada de culpa no plágio do professor Andreimar Martins Soares foi procurada pra valer? A simples menção “Carolina não foi encontrada” é muito fraca para o tamanho da condenação que lhe é posta. Merece uma chance de responder a Soares, que simplesmente transfere a culpa sem que a moça tenha sido ouvida.
  4. Boa abertura a do texto “Ampliação no bandejão da Física: o prazo é para agosto”. Comparar a velocidade da luz com a obra foi acertadíssimo. Como ex-dependente de bandejão (na UFPE, Recife), este ombudsman agradece.
  5. A pagina “Em pauta”, que aborda metrô e aumento de ônibus é bem intencionada, mas, como na maioria das reportagens do JC, peca por ser muito genérica. Poderia ter explorado mais personagens como o calouro Vinicius Viztto, que mora na zona leste. Quanto ele gasta por mês para chegar na USP?
  6. No final da reportagem sobre a editora Patuá, uma boa iniciativa para publicação de novos autores, o texto insinua um certo elitismo da feira de livros da USP. Só as grandes editoras participam? Há veto às pequenas e independentes? Boa pauta para o futuro.

Pra começo, é isso. E vamos desencaretar. Não estou falando em todo mundo virar um Hunther Thompson com o seu jornalismo gonzo, mas não precisa copiar tanto a chatice do mercado – vocês terão todo tempo do mundo para isso. Por enquanto, exerçam a liberdade possível.

Xico Sá é atualmente colunista esportiva da Folha de S. Paulo, participa do programa Saia Justa, da GNT e Cartão Verde, da Cultura. Estreou recentemente o blog “Xico Sá: o cronista, o repórter, o homem, o mito, a fraude”, no site da Folha. Já colaborou com a revista Trip e foi apresentador da MTV. É autor de uma dezena de livros, dentre os quais Divina Comédia da Fama e Modos de Machos & Modinhas de Fêmea. Fale com o ombudsman: ombudsman.jc[@]gmail.com