Até onde vai “as liberdade” linguística?

Após um livro distribuído pelo MEC colocar em questão o uso da expressão “os livro” como algo correto, surge a polêmica: afinal, a língua falada faz parte da gramática? Ela deve ser ensinada nas escolas? Existe preconceito linguístico?
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A chamada norma culta não é, a rigor, a língua de ninguém – Projeto Redigir
A boa educação deverá ajudar a libertar as classes subalternas – Evanildo Bechara


A chamada norma culta não é, a rigor, a língua de ninguém

O Projeto Redigir é um projeto de extensão da Universidade de São Paulo que realiza curso gratuito de redação e gramática para jovens e adultos

Há décadas é ponto pacífico entre os acadêmicos que a língua é viva porque é propriedade cultural dos falantes, e se altera a partir de e com eles. Assim, a multiplicidade social, econômica, cultural e geográfica do Brasil resulta numa multiplicidade de maneiras de falar – seja no léxico, na fonética, ou na construção sintática.

Dessa maneira, a chamada norma culta, ensinada pelas gramáticas normativas, não é, a rigor, a língua de ninguém, a não ser a do falante ideal – que não existe. Ela é, na verdade, um conjunto de regras que adquiriu prestígio, não necessariamente por uma “evolução” linguística, como sugerem alguns colunistas, mas por estar associada à fala de grupos de maior prestígio social.

Todo linguista sabe disso, mas, ao contrário do que dá a entender a abordagem das reportagens e as análises que a elas se seguiram, nenhum jamais defendeu que se abandone o ensino da norma culta. O livro “Por uma vida melhor” também não defende, muito pelo contrário. A frase que escandalizou as redações é parte do capítulo introdutório de uma gramática normativa, que nada mais faz senão ensinar as regras da norma culta em todos os seus demais capítulos. Ademais, como o próprio título do capítulo mostra (“Escrever é diferente de falar”), o que se defende é que o aluno reconheça a variação possível na FALA.

Pelo que os próprios Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) do MEC estabelecem desde 1997, o papel da escola é também estimular o uso crítico da linguagem. Por isso, os PNCs determinam que se discuta em sala de aula a variação linguística.

O aluno (e o professor) deve entender que usar a norma padrão com todos seus adjuntos, flexões e concordâncias na mesa de almoço da família, por exemplo, pode gerar afastamento e dificultar a comunicação entre os falantes. Assim como, numa entrevista de emprego, o uso de uma linguagem distante da norma padrão resultaria na não contratação. Propor ao aluno essa discussão permite que ele faça um uso crítico da linguagem, identificando seus vários registros, escolhendo o mais adequado para cada contexto, e exercendo suas habilidades de comunicação.

Ao mesmo tempo, discutir o tema permite ao aluno não reproduzir certo preconceitos linguísticos com a FALA do caipira ou do nordestino ou de pessoas com menor escolaridade. Todos vivenciamos nossa língua materna desde pequenos e somos perfeitamente capazes de nos comunicar por meio dela. Obviamente, não é papel da escola incitar o preconceito entre seus alunos. Logo, ela faz bem quando reconhece as diferenças e ensina o formal para que, inclusive, tais diferenças sejam melhor discutidas e a barreira entre elas rompida.

Entender a variação linguística como um fenômeno natural (sobretudo em se tratando de Educação de Jovens e Adultos) é reconhecer que o aluno vive uma realidade linguística anterior à sua alfabetização, e entender que essa realidade não deve ser vista com preconceito. Melhorar a autoestima do aluno é fundamental num processo de educação inclusiva.

A escola não deve relegar ao aluno um papel passivo, subestimando sua capacidade de dominar o próprio idioma. O aluno que se apropria do padrão culto e que sabe usar as variantes populares nas situações adequadas domina a língua portuguesa de maneira verdadeiramente “correta”, tornando-se sujeito de sua própria fala, capaz de conquistar sua emancipação e sua cidadania.

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A boa educação deverá ajudar a libertar as classes subalternas*

Evanildo Bechara é gramático e membro da Academia Brasileira de Letras. *Artigo publicado originalmente no jornal “O Dia” de 22 de maio e cedido pela ABL ao Jornal do Campus

Partindo da tese central de que “escrever é diferente de falar”, a autora do livro “Por uma vida melhor”, Heloísa Ramos, encontra oportunidade para estabelecer a distinção do aprendizado da língua falada [aprende-se a falar a língua materna “espontaneamente, ouvindo os adultos falarem ao seu redor”] e da língua escrita [que “exige um aprendizado formal”. A partir dessa distinção, a Autora comenta: “As classes sociais menos escolarizadas usam uma variante da língua diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização. Por uma questão de prestígio – vale lembrar que a língua é um instrumento de poder –, essa segunda variante é chamada de variedade culta ou norma culta, enquanto a primeira é denominada variedade popular ou norma popular” (pág. 12).

Depois dessas conceituações válidas em Linguística e em Didática de língua materna, a Autora, partindo de redações de alunos e de livros, estuda o emprego do ponto para separar orações, algumas regras de acentuação gráfica, uso de pronomes oblíquos átonos nas suas diversas formas (o, lo, no) e flexões, emprego de ele como objeto direto na norma informal e concordância verbal e nominal. Tudo ia muito bem na sua descrição do português, quando o vezo do linguista fê-la, extrapolando, confundir-se com o professor de língua portuguesa, e pôr em relevo a nobilitação da norma popular em face do preconceito com que, na opinião da Autora, a classe “dominante” critica os menos escolarizados. E num local, momento e material impróprios defende a lição seguinte:

“Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”. “Você pode estar se perguntando: Mas eu posso falar ‘os livro’? Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico” (p.15).

Assim também justifica as concordâncias ‘Nós pega o peixe’ e ‘Os menino pega o peixe’.

Como bem se referiu a Autora, em páginas atrás, que há “local, momento e material próprios” para ensinar a escrever e falar segundo o padrão da norma culta, acreditamos que a exposição até aqui não oferece o local, nem o momento, nem o material próprios para a defesa das aludidas discordâncias. Um livro que leva o aluno a empregar os pronomes oblíquos, nos exercícios da página 21: “não conseguiu localizá-lo”, “eliminaram-nas”, é porque está atento e comprometido com a melhoria dos jovens e adultos para quem foi escrito.

Outro momento que, a nosso ver, destoa deste propósito é ter perdido a Autora a oportunidade de oferecer aos leitores mais textos escritos que exemplificassem a norma culta; em vez disto, apresentar-lhes, com melancólico voto laudatório, a paródia de Juó Bananére Migna terra, vazada num improvável dialeto ítalo-português “oral de sua época”, contrário a tudo que vinha ensinando, numa oposição à Canção do exílio, de Gonçalves Dias, que mereceu da Autora o conceito de “postura ‘patriota’ extremamente sentimental”, poema que poderia ser aproveitado para comentários pertinentes a vários aspectos, entre os quais, casos linguísticos abonadores dos fatos explanados no capítulo. Gosto não se discute.

Como bem disse o linguista italiano Raffaele Simone, enquanto a posição populista perpetua a segregação linguística das classes subalternas, a boa educação linguística deverá ajudar a sua libertação. Esperamos que entenda nossas críticas e sugestões com o propósito honesto de ver o livro melhorado em próxima edição.

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