Uma olhar histórico para o cotidiano

O comportamento atual dos pedestres sob a luz da sociologia

Para a professora de sociologia Fraya Frehse, muito do comportamentode pedestres e motoristas pode ser explicado resgatando suas raízes históricas. Em seu livro “O tempo das ruas na São Paulo de fins do Império”, de 2005, trouxe à tona a ideia do transeunte,que emerge ligado a grupos socialmente menos privilegiados. A segunda obra abordando a temática, “Ô da rua! O transeunte e o advento da modernidade”, está prevista para ser lançada no segundo semestre deste ano.

Jornal do Campus: Como uma lei de trânsito pode alterar o uso do espaço público?
Fraya Frehse: A primeira coisa a ser dita é que não se trata de uma lei nova. O que está em jogo agora é tentativa de implementar um artigo do Código de Trânsito Brasileiro que começou a vigir em janeiro de 1998. Nesse atual momento, a Prefeitura de São Paulo está empenhada em fazer um artigo específico do Código já existente ser cumprido. É importante lembrar também que esse tipo de iniciativa já há tempos vige em Brasília, implementada quando Cristovam Buarque foi governador do Distrito Federal (1995-1999).
Uma lei de trânsito só pode alterar o uso do espaço público se vai ao encontro de anseios que se encontram dispersos na própria população; em suma: se a própria população considera legítimo o que a lei propõe. É o que se percebe, por exemplo, na ampla incorporação popular da chamada lei do cinto de segurança.

JC: Como você avalia a implementação da lei em Brasília?
FF: Foi bem sucedida em Brasília. Mas depende muito do estímulo dos governos. Considerando as viagens que para lá fiz entre 2000 e 2009, fui percebendo nos últimos anos que nem todo mundo respeita a faixa de pedestre sempre. Mas mesmo assim, levando-se em consideração que Brasília é uma cidade que quase não tem semáforos e esquinas, não foi pensada para o transeunte do ponto de vista do projeto urbano, o que vige ali é um avanço, em termos de respeito ao pedestre.

JC: E em São Paulo?
FF: Tenho acompanhado pelos jornais, e, andando pelo centro, percebo que tem havido um empenho por parte do poder público em divulgar o artigo de respeito dos motoristas à faixa de pedestre. Porém a estratégia utilizada deixa também uma dúvida no ar: o quanto a fiscalização atual expressa uma mudança efetiva de postura do poder público em relação ao pedestre, a valorização positiva desse na cidade. A fiscalização tem sido aplicada apenas no centro, até o momento. Se se trata de uma nova postura, por que restringi-la a um perímetro específico da cidade apenas? Sei que há dificuldades práticas ligadas às possibilidades efetivas de fiscalização. Mas o caráter fragmentário deixa dúvidas… Outro aspecto: se se trata de uma mudança de postura, como explicar que as faixas de pedestre se mantenham mal conservadas na imensa maioria das ruas da cidade? E o que dizer dos semáforos para pedestres, cuja duração para a passagem de transeuntes é, em geral, excessivamente curta?.Não percebo até o momento uma política sistemática em prol da alteração desse estado de coisas.

JC: É possível uma mudança comportamental de pedestres e motoristas por meio de ações impositivas?
FF: Retomo a resposta acima. Se a lei vai ao encontro de anseios, preocupações da própria população, os sentidos que lhe vão ser atribuídos não ressaltarão, ao menos em primeira instância, o seu caráter “impositivo”. A chamada lei do cinto de segurança “pegou”, como se costuma dizer, porque respondia a um anseio que se encontrava disperso no senso comum da população. O artigo de respeito à faixa de pedestre também responde a anseios da população, mas a questão é saber de que população se trata. É isso que abordo em meu novo livro. Em São Paulo, até a crise final da escravidão, a rua era o espaço privilegiado para a permanência regular de pobres, gente – escrava ou livre – para a qual a rua era espaço privilegiado para atividades de trabalho braçal e a sociabilidade a esse ligada. Senhores e senhoras da elite, social e/ou economicamente privilegiada, só frequentavam as ruas cerimonialmente, em momentos excepcionais ou periódicos de seu dia a dia ligados a missas, procissões e festas (sobretudo religiosas) – as quais, aliás, eram muito comuns nas cidades brasileiras de então. O transeunte, como tipo urbano que se caracteriza – e tem esse nome – por passar com regularidade pelas ruas, em trânsito, justamente, é uma personagem urbana muito própria da modernidade. Em São Paulo, ele começa a se fazer presente nas ruas centrais justamente à medida que vão se difundindo por ali, a partir das décadas finais do século 19, atividades socioeconômicas que implicam uma rotina de passagem regular pelas ruas por parte de seus protagonistas, indo e vindo entre os locais de trabalho, a moradia e os cada vez mais numerosos locais de consumo e de diversão. Trata-se, portanto, de uma personagem historicamente nova em São Paulo, diferente daquelas que costumavam permanecer nas ruas dia a dia; e também daquelas que por ali apenas desfilavam, cerimonialmente. O transeunte começa a ganhar as ruas em meio à decadência da escravidão, sendo os seus representantes sobretudo homens, mulheres e crianças que não podiam se dar ao luxo de serem conduzidos por terceiros – em seges, bondes e, posteriormente, nos primeiros automóveis – pela cidade.

Então, quem é, afinal, o transeunte? Em teoria, o transeunte somos todos nós, dos mais diferentes estratos sociais, que passamos pelas ruas dia a dia. Mas em São Paulo, historicamente, o transeunte se origina  no seio de estratos socialmente pouco conspícuos da sociedade oitocentista: em especial, em meio às então nascentes camadas médias e aos estratos socialmente desprivilegiados. Eram representantes desses segmentos que tendiam a viver cada vez mais, na cidade engolfada pela modernidade, uma rotina de tendenciais circulações pelas ruas – para fins de trabalho ou de diversão. Quanto a representantes da elite, eles também começam, nessa época, a frequentar com um pouco mais de regularidade as ruas, indo e vindo de restaurantes, da estação de trem, dos jardins públicos. E, no entanto, isso ocorre, do ponto de vista histórico, por um tempo muito restrito – se comparado com outras sociedades, em particular em Londres, Paris e Berlim, que estudei de modo mais aprofundado: três a quatro décadas se muito. Basta levar em conta que um dos primeiros automóveis que circula pela cidade, em 1901, é o prenúncio da tendência que ganha corpo a partir de então: a de que representantes das mais conspícuas famílias da cidade passem a circular de carro por ali. Não surpreende que, no início do século 20 a quantidade de atropelamentos fosse altíssima: representantes da elite andavam pelas ruas em seus automóveis como se estivessem em disparada pelas fazendas com seus cavalos.

De todo modo, difundiram-se nesse contexto mesmo os meios públicos de transporte, difundiu-se o automóvel, que se popularizou sobretudo nas últimas décadas. Tudo isso em meio aos problemas constantes no transporte público. E eis que, no atual contexto, o transeunte é quem não se pode dar o luxo de circular de carro pela cidade: pedestres provindos dos estratos médios e baixos.

Por tudo isso, se hoje pedestres não têm muita coragem de estender a mão, ficam sem graça – como têm enunciado os jornais -, eles evidenciam, no dia a dia nas ruas, os dilemas da cidadania no Brasil. Se transitar pelas ruas é o comportamento corporal que, justamente por igualar todos os pedestres fisicamente nas ruas, faz de todos cidadãos em circulação, acanhar-se a reivindicar essa igualdade é significativo das contradições históricas que nos separam justamente desse estatuto de cidadãos, na rua. No fundo, estudar a rua é estudar os entraves cotidianos implícitos na instauração da democracia no Brasil. O artigo de respeito à faixa de pedestre expressa um anseio pela igualdade de todos na rua; a timidez dos pedestres em reivindicá-la, o constrangimento de exercê-la, comportamento que se explica de maneira privilegiada analisando-se a gênese histórico-social do transeunte no Brasil.

JC: Como você compararia esses aspectos com outros países?
FF: Em outros países, como na Alemanha, por exemplo, as políticas em relação aos espaços públicos são explícitas no incentivo a que você só use o carro em ocasiões excepcionais, para fins de lazer em fins de semana e feriados, sobretudo. Na rotina dos dias de semana, em especial no horário comercial, o que é promovido é o estatuto do transeunte. E os seus dois contrapontos sobre rodas: a bicicleta e os meios públicos de transporte.

Já a Prefeitura de São Paulo tem ido em outra direção: por um lado, não investe suficientemente na melhoria e ampliação da frota de ônibus, deixando inclusive de renovar os respectivos trajetos (em alguns pontos da cidade, as linhas percorrem o mesmo trajeto há no mínimo trinta anos). Por outro lado, reservou há algum tempo para algumas ruas o estatuto de “ciclorota”. O problema é que essas ruas estão em bairros residenciais, de classe média alta, cujos representantes passam de bicicleta por essas vias se muito em momentos de lazer. Quanto a outros moradores da cidade, é improvável que essa ciclorrota tenha para eles a potencialidade de unir pontos nodais de sua rotina na cidade, uma vez que transcorrem dentro e entre bairros essencialmente residenciais. No que se refere às ciclovias, atitude louvável, a limitação de só funcionarem no fim de semana é bastante significativa da concepção que subjaz a essa política: a de que as bicicletas são meios de transporte essencialmente para o lazer. Essas medidas vão na contramão da Europa, onde as bicicletas fazem parte do cotidiano de circulações dos transeuntes pelas cidades.

JC: Como você vê as relações de trânsito na USP?
FF: Não tenho a impressão de que o que há aqui é muito diferente do que vige nas ruas da cidade. Já recebi muita buzina dentro do Campus, por parar para pedestres diante da faixa de pedestre. Há um projeto louvável de aluguel de bicicletas na POLI, projeto promissor; justamente por isso é uma pena que ainda não tenha sido ampliado para outras unidades da USP.

E isso seria fundamental, pois o Campus, tal como concretizado fisicamente, não foi pensado para o transeunte. Nos últimos tempos têm aumentado as faixas de pedestre e os semáforos. Mas estes têm sido instalados sobretudo como suportes para as faixas, o que só evidencia que essas não têm funcionado. O ônibus circular é outra evidência das dificuldades de promoção da circulação de transeuntes na USP: a sua quantidade e as rotas percorridas são tão diminutas que ele também não chega a configurar uma alternativa efetiva para quem quer e/ou precisa circular a pé pelo campus. Enfim, depois de demorar tantas décadas para o metrô paulistano finalmente atravessar o rio, por que a estação correspondente foi instalada a tamanha distância do Campus?

JC: Fale um pouco sobre seu livro.
FF: No primeiro livro, “O tempo das ruas na São Paulo de fins do Império”, de 2005, foi possível rastrear o aparecimento histórico do transeunte em São Paulo, que emerge nas ruas da cidade nas décadas finais do Império ligado a segmentos socialmente menos privilegiados e às então nascentes camadas médias, naquela sociedade escravista. O transeunte personifica, nas ruas, deslocamentos próprios de indivíduos engajados nas ocupações socioeconômicas próprias das então ainda incipientes camadas médias na cidade: o nascente jornalismo, o trabalho como fotógrafo etc. O próximo livro, que deve ser lançado agora no segundo semestre chama-se “Ô da rua! O transeunte e o advento da modernidade em São Paulo”, assume o transeunte como referência metodológica para interpretar, por um lado, como o advento da modernidade na cidade repercutiu, entre o início do século 19 e o início do 20, nas mudanças nas regras de civilidade nas ruas do centro; e, por outro lado, refletir o que essas transformações nos comportamentos corporais e interações sociais na rua revelam sobre o tipo de cidade que está se gestando em São Paulo nesses anos.

JC: Mas em cidades europeias o transeunte também não surgiu ligado às camadas médias e socialmente desprivilegiadas?
FF: De fato, o transeunte aparece ali historicamente ligado à burguesia, que no Brasil não encontra correspondência exata na noção sociológica de “camadas médias”. Na Europa, a burguesia emerge historicamente a partir da Idade Média, consolidando-se econômica e depois politicamente a partir sobretudo dos séculos 17-18… Se temos em mente que os primeiros automóveis particulares remontam a fins do século 19, foram no mínimo três séculos de passagem regular de representantes desses estratos pelas ruas em meio à prevalência, ali, de outros usos, ligados justamente à permanência regular ali para fins econômicos e/ou de sociabilidade. Em São Paulo, entre o momento em que começam a despontar na cidade ocupações socioeconômicas próprias da difusão das camadas médias ali, e o aparecimento dos primeiros automóveis, transcorrem 40, 50 anos. Na Europa há a evidência de um processo muito mais delongado de convivência da burguesia com a rua.

O artigo do Código de Trânsito em prol do respeito à faixa de pedestre com efeito promove o transeunte. Mas quando se pensa na vida em São Paulo tendo o próprio transeunte como referência, os seus dilemas permanecem, a despeito da lei em questão, muitos: uma estrutura urbana não ajustada a ele, o desrespeito por parte de motoristas diversos, e mesmo o não trânsito de motoristas e pedestres que se deixam ficar dia a dia nas ruas: aqueles em fila dupla; esses em barracas de comércio ambulante, por exemplo. O transeunte não remete a um papel social definido, e sim a uma circunstancia na vida de todos nós, nas ruas das cidades engolfadas pela modernidade.

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