2011, Riots, Inglaterra

Análises e teorias sobre os movimentos de rua que abalaram a terra da Rainha
Riots’n’what?

Ninguém pensaria que um homem de 29 anos morto no dia 4 de agosto num subúrbio de Londres causaria tanto rebuliço. Mark Duggan, morador de Tottenham, no norte da capital inglesa, foi assassinado a tiros por policiais depois de o minitáxi em que viajava ser interceptado em uma já planejada operação para prendê-lo, por crime com armas. De fato, Duggan estava portando um revólver carregado àquela hora, mas laudos de alguns dias depois afirmaram que ele não a usou.

Além da já esperada reação da comunidade por causa da morte, o Independent Police Complaints Comission (IPCC) e o governo inglês receberam muito mais depois de sua falha em reportar os fatos de modo confiável (eles “inadvertidamente” deixaram a entender que havia ocorrido uma troca de tiros). Na madrugada de sábado para domingo, confrontos com a polícia assustaram moradores da área, 55 pessoas foram presa por violência, e várias lojas saqueadas (o chamado “looting”, em inglês). De acordo com apuração da BBC, até agora 3100 pessoas foram presas nos tumultos, tendo sido 1100 já indiciadas por roubo, violência ou desordem.

O que havia começado como um protesto pacífico em frente à estação de polícia se transformou nos chamados “riots” da Inglaterra, que ocorreram, em massa, até o dia 10 de agosto (veja uma timeline dos acontecimentos feita pela BBC). Representaram um fenômeno inédito em décadas. Dividiram opiniões e circundaram muitas teorias. A seguir, as informações e análises mais interessantes sobre os acontecimentos que abalaram a nação do fish ‘n’ chips desde o começo do mês.

O novo megafone

A família de Duggan, desde o começo, desaprovou a violência. Na página do Facebook criada para o tributo a Mark, havia pedido que as pessoas postassem vídeos e fotos das viaturas incendiadas, para “mandar a mensagem de por que isso se tornou um riot”. De sábado para segunda, porém, deu um tom mais conciliatório à medida que os riots se alastravam para regiões próximas: “se as pessoas se importassem com essa página de tributo, parariam de incendiar & saquear. Vocês que encorajam isso, bom, precisam crescer. A família de Mark não precisa disso!”.

O começo da divulgação pode até  ter sido no Facebook, mas a comunicação depois se virou para outro meio: O BlackBerry Messenger (BBM). O serviço de celular foi o método favorito para planejar as ações entre os insurgentes desde o primeiro dia de tumultos. Vantagens? 1. É de graça entre os usuários do BlackBerry. 2. É uma rede social privada em que quase todas as mensagens são criptografadas e assim irrastreáveis por autoridades. 3. É usado por 37% dos jovens britânicos, fato que, aliado à  3. Ferramenta one-to-many (permite enviar mensagens a todos de sua rede social), faz do BBM melhor que Twitter ou SMS.

Exemplo de mensagem:

“I don’t care what ends you’re from, we’re personally inviting you to come and get it in. Police have taken the piss for too long and to be honest I don’t know why its taken so long for us make this happen. (…) Everyone meet at 7 at stratford park and let’s get rich.”

Ou:

“Everyone from all sides of London meet up at the heart of London (central) OXFORD CIRCUS!!, Bare SHOPS are gonna get smashed up so come get some (free stuff!!!) fuck the feds we will send them back with OUR riot! >:O Dead the ends and colour war for now so if you see a brother… SALUT! if you see a fed… SHOOT!”

A Resarch in Motion (RIM), empresa criadora do BlackBerry, pode ser legalmente ordenada a entregar detalhes de usuários suspeitos de atividade ilegal à polícia. No entanto, já insistiu que não é capaz de decodificar as mensagens enviadas. De qualquer modo, o governo ameaçou derrubar as redes sociais do país e fechou acordos com a empresa para controlar o serviço – medida que, quando adotada no Egito, Líbia e Síria, argumentaram usuários no Youtube, foi rechaçada pelo próprio governo inglês.

Anarchy in the UK?

Logo que os riots começaram, muito se disse sobre os saques serem trabalho de gangues organizadas, ou mesmo uma rede delas em conjunto.

Gavin Knight, escritor sobre crime em Londres, para o Guardian, defendeu que nenhuma das duas hipóteses era verdade. Lá, os membros de gangues crescem junto, são muito próximos, não atacam os da própria comunidade. Protegem-se contra rivais do norte ou do leste. E não apresentavam o perfil de membros já experientes: estavam envolvendo jovens cada vez mais jovens nas atividades e não estariam apenas interessados em tênis e TVs, como foi percebido – teriam roubado bancos e os cofres das lojas. A teoria de uma rede de gangues em ação também é improvável, pois membros rivais que entrassem em Tottenham estariam arriscando represálias, pois não deixariam de se atacar “apenas” porque estava rolando um tumulto.

No fim, os jovens não tinham nada em comum a não ser pelo fato de estarem jogando pedras na polícia e procurando por exaltação.

Carro incendiado e graffitado “Welcom to Hackney”, bairro londrino (foto: Alastair)
Carro incendiado e graffitado “Welcom to Hackney”, bairro londrino (foto: Alastair)
Faíscas de um lado e de outro

Exaltação essa que atingiu proporções um tanto quanto incontroláveis. Além das óbvias perdas materiais e financeiras para o comércio, para os moradores, e, ainda, para as seguradoras – a Associação de Seguradores Britânicos está supondo “dezenas de milhares de libras” em pagamentos – as perdas humanas também aparecem. O jornais ingleses reportaram cinco pessoas mortas e dezenas de feridos.

Um caso de agressão ficou famoso pela internet: um malaio chamado Mohd Asyraf Raziq Rosli foi comprar a comida que quebraria seu jejum do Ramadã quando foi atacado por um grupo de saqueadores. Espancado e caído no chão, algumas pessoas vieram, aparentemente, ajudá-lo. Nessa hora do vídeo, pensamos que o mundo ainda tem salvação, até que essas mesmas pessoas abrem a mochila do malaio e saem andando com o que quer que estivesse dentro.

Caso dois: Darcus Howe, um imigrante indiano, morador de um dos bairros pobres em que os protestos foram mais violentos, é entrevistado pela rede estatal BBC. Ele diz que se os líderes políticos tivessem ouvido os jovens negros e brancos, saberiam que alta estava para acontecer no país. A entrevistadora, então, o interrompe e pergunta se ele não condena os atos de violência em seu bairro. Ele responde que o preocupa o fato de Duggan ter sido morto a metros de sua casa. A repórter continua tentando mudar o foco da entrevista e pergunta se isso e a discriminação contra negros é motivo para “sair causando a desordem que vimos nos últimos dias”. Ele responde que é uma insurreição como a que está ocorrendo na Síria. Por fim, a entrevistadora dá a entender que Howe faria parte dos grupos arruaceiros, o que causa completa indignação por parte dele, que pede “mais respeito com um velho negro imigrante da Índia”.

A entrevista mostra uma visão diferente sobre os riots: não defende a violência, mas traz à tona discriminação contra imigrantes e segmentos de algumas classes sociais – e acaba se transformando em um vídeo viral pelo mesmo motivo que Howe repudiava.

E nem é Howe o único de uma classe específica que não defende a violência. Outra que bombou em visualizações na internet foi uma mulher que grita no vídeo:

This is a fucking realtiy. Allow out burning peoples property. Allow out burning peoples shops that they work so hard to start thier business. Do you understand? That lady is trying to make her busines work and you lot wana go and burn it up? For what? To say your war-ing and your bad man? This is about a man who got shot in Tottenham. This anit about having fun on the road and burning up the place. Get it real black people. Get real. Do it for a cause. If your fighting for a cause then fight for a fucking cause. You lot piss me the fuck off! I’m shamed to be a Hackney person. Because we are not all gathering together and fighting for a cause. We are running out of Footlocker and theifin shoes. Dirty thiefs ya know. Tut.

Válvula de escape – “Youth riots”

Frente a essas ações um tanto energéticas dos jovens, logo surgiram hipóteses de o que estaria por trás de seus impulsos.

Os clubes da juventude seriam uma delas. Aliás, a falta dos clubes. Em fevereiro deste ano, um quarto dos serviços para os jovens sofreria cortes durante o ano seguinte de 30% no orçamento, representando ₤100 milhões e três mil trabalhos a menos. O Departamento da Educação disse que cada região (“council”) deve decidir onde gastar nesses serviços e que cada uma também deve trabalhar mais junto da comunidade, grupos voluntários e setor privado para criar serviços acessíveis.

Apesar disso, os cortes se mostraram de outro jeito. O anúncio provocou protestos pelo Reino Unido e teses como a de Gavin Knight corroboraram para isso. Segundo declaração para o Guardian, eram os clubes que ofereciam atividades culturais e esportivas para jovens de áreas pobres e desestruturadas. “Sem trabalho ou aspirações sociais, os clubes da juventude eram um meio para distraí-los. Em regiões carentes com alto povoamento, jovens perturbados não mais precisavam procurar um senso de identidade na vida violenta das ruas. A mídia faz um estereótipo deles e esse distanciamento somente agrava o problema”.

Válvula de escape – “Shopping riots”

Outras três hipóteses, apresentadas por Zoe Williams, colunista do Guardian,  situam-se em três ângulos: 0˚, 180˚ e 90˚.

No ângulo 0˚, a posição de vários políticos – não somente conservativos. Consideram os protestos como pura criminalidade, sem propósito maior e com a prisão como destino certo. Uma visão autoritária disso seria a de que se trata de uma geração com um falso senso de direito, criado pela cultura da vítima, e uma leniência geral, fruto do sistema de justiça criminal. Foram roubos glorificados, conduzidos por pessoas que clamam não pelo que podem fazer por elas mesmas, mas pelo que outros deveriam ter feito por elas.

Em 180˚ está uma visão muito mais liberal. Camila Batmanghelidjh expressou, pelo The Independent, que os eventos são uma resposta humana natural à brutalidade da pobreza. Retrata uma vida dramática, humilhante, indigna. De pessoas sem nada numa sociedade rica de possessões.  Pessoas condenadas a uma escuridão onde sua humanidade não é valorizada o suficiente para ser ajudada.

Williams, em particular, defende o ângulo de 90˚, mais pragmático. Os itens saqueados tinham uma peculiaridade: se fossem comida, as pessoas poderiam simpaticamente enxergar uma causa nobre; se fossem itens de luxo, seria uma causa mais crítica em relação a política. Mas não era isso: os rioters roubavam tênis e laptops. Em Clapham Junction, a única loja intocada foi uma livraria, e numa drogaria, muito de um remédio digestivo foi levado.  Os grupos indo de shopping para shopping, correndo para entrar e sair de lojas de artigos esportivos antes que os policiais chegassem. Lojas pequenas, sem seguro, saqueadas pelas bebidas e cigarros.

Ou seja, os riots se transformaram em shopping riots, como Williams nomeia, caracterizados pelas escolhas de consumo dos participantes. “É o que acontece quando as pessoas não têm nada, têm seus narizes esfregados em coisas que não conseguem comprar e que não têm nenhum motivo para acreditar que um dia conseguirão comprar”, diz a colunista. Alex Hiller, um expert em marketing e consumo da Nottingham Business School, concorda com ela: “Eles provavelmente estão se rebelando contra um sistema que os nega suas recompensas porque não podem pagar por elas”.

Zygmunt Bauman, considerado um dos mais influentes sociólogos da atualidade, também defende a hipótese do consumismo em sua entrevista para o Social Europe Journal: “Esse campo de minas em particular foi criado pela combinação de consumismo e crescente desigualdade. Foi uma rebelião não de famintos ou de minorias, mas de consumidores desqualificados e humilhados pela exposição dos ricos para os quais têm acesso negado. Esses riots são mais bem entendidos como a revolta de consumidores frustrados”.

E continua: “Eles não se rebelaram para uma mudança na sociedade ou contra o consumismo. Eles fizeram uma frustrada tentativa de participar, ainda que por um momento, do grupo de consumidores dos quais foram excluídos. Uma explosão espontânea de frustração acumulada que somente pode ser explicada em termos de ‘por causa de’, não de ‘para que’”.

Causas econômicas também são o cerne da questão para Heni Ozi Cukier, cientista político entrevistado para esta seção. Para ele, a crise econômica de 2008 nos EUA e no mundo gerou uma crise política fruto da insatisfação do povo com o governo. E então aparece a terceira crise, que arranha a legitimidade do sistema político. Em Londres, as pessoas estavam tão descrentes em relação ao sistema, que passaram a considerar a ordem como mentira, como desonesta e incompetente. O norte deles passou a ser o de “fazer o que eu quero” contra o privilégio de poucos e de levar isso às ruas. Os riots foram um conjunto de reações instintivas, produtos da psicologia social que retirava deles sua identidade e os transformava em crowds, sem saber explicar direito seus motivos. Foram reflexos que não previam uma movimentação ideológica, mas que se aproveitaram de costumes já intrínsecos, como o uso de redes sociais.

No entanto, para Leandro Piquet, professor de Relações Internacionais, ainda não estamos suficientemente distantes dos eventos para estabelecer conexões entre os riots e a situação sócio-econômica ou de identidade, por exemplo. O que podemos agora é observar as conexões que já foram feitas pelas investigações policiais e governamentais, e tentar entender o que pode ser feito para controlar e, talvez, o que fica de lição para frente. Também afirma que é difícil imaginar manifestações dessa magnitude perdurarem sem algum tipo de organização, como aconteceu agora, diferentemente dos riots de Chicago nos anos 60.

Riots’n’questions

Provavelmente esses e outros motivos fizeram parte do rol de sentimentos que levaram os jovens desenfreadamente para as ruas. Os riots já terminaram, mas sobram todas as arestas não aparadas: como lidar com os novos – e muitos – presos? Como isso afetará a imagem do primeiro ministro David Cameron? Como se dará a discussão entre governo e polícia sobre estratégias de ação? A educação deve passar por uma reformulação?

É uma sequência de perguntas ainda sem respostas, mas várias análises surgem todo dia com o intuito de tentar destrinchar todo o espectro do fenômeno inglês. Aqui foram apresentadas algumas facetas do que aconteceu a ainda acontece na terra da Rainha, e, agora, na terra do riots.

Loja Carpet Store após ser incendiada no dia 6 de agosto (foto: Alan Stanton)
Loja Carpet Store após ser incendiada no dia 6 de agosto (foto: Alan Stanton)