E quem garante o direito dos terceirizados?

Funcionários são vítimas da precarização: recebem piores salários e não têm representatividade. No setor público não é diferente

Executivos espanhóis vieram até o Brasil neste mês para desculparem-se no Congresso Nacional. O motivo foi escancarado pela mídia: a exploração de mão-de-obra imigrante, “em condições análogas ao trabalho escravo”, em oficinas pela cidade de São Paulo que produziam roupas para a marca ZARA.

Conforme divulgou a Repórter Brasil, as subcontratações foram realizadas pela empresa intermediária AHA, de forma que direitos trabalhistas, e direitos humanos, foram se perdendo ao longo de uma cadeia de terceirizações. Para o professor Jorge Luiz Souto Maior, da Faculdade de Direito do Largo São Franciso, “Terceirização traz a marca: ‘não quero me relacionar com outro’”  e é assim que a exploração de trabalhadores acontece mais próximo do que imaginamos.

Histórico

De acordo com Alexandre Barbosa, professor de História Econômica no IEB, especializado em economia do trabalho, a tendência da terceirização iniciou-se nos anos 90, porém não é um processo circunscrito ao Brasil. “Antes, havia a internalização dos custos do trabalho, todo mundo que contratava um trabalhador, principalmente nas sociedades europeias, pagava um conjunto de direitos. Aí passou-se por uma nova etapa do capitalismo, onde as economias se abriram, as esferas financeiras passaram a dar a tônica e a própria esfera produtiva ficou impactada, você precisa gerar o mesmo rendimento e aí você atinge o elo mais fraco. Mesmo nos países em que se criou uma legislação do trabalho, começou-se a enfraquecer isso e o processo de terceirização tornou-se uma tendência”,explicou o professor.

No caso do Brasil, o processo de precarização é muito maior e não se restringe apenas a terceirização: já se  tinha trabalhador sem carteira e sem acesso a previdência social antes mesmo desta tendência. “Os anos 90 foram um período de baixo crescimento econômico, abertura da economia, juros elevados e câmbio baixo. Assim, as empresas começaram a reduzir os custos do trabalho, pois de qualquer forma havia uma quantidade de trabalhadores disponíveis muito grande”.

Para Barbosa, há dois grandes problemas quanto a terceirização: o primeiro é se esses trabalhadores tem o seus direitos assegurados, e segundo é quem os representa? “Há uma fragilização do segmento da classe trabalhadora a partir do momento em que foram terceirizados. Isso não acontece só no setor privado, também está no setor público”.

“A USP não tem política de terceirizados”

Barbosa lembra que o setor público tradicionalmente tem condições de trabalho diferenciadas, reduzindo desigualdades. No entanto, também não escapou à terceirização. Para Souto Maior, “a terceirização no setor público é uma afronta à Constituição brasileira, que não prevê possibilidade alguma de contratação de servidores públicos sem a realização de concurso público”.

Na própria USP, os terceirizados estão por toda parte, mas, para Barbosa, falta uma política de recursos humanos por parte da Universidade: “A USP sabe as condições de trabalho dessas pessoas? Sabe quem os representa? A primeira coisa de uma universidade que se diz pública e que diz ter responsabilidade social é parar de tratá-los como infra-cidadãos”.

Segundo Adriana Cruz, assessora da Reitoria, a terceirização traz vantagens para a administração pública porque reduz o custo da folha de pagamento e permite flexibilidade, já que contratos com as empresas são modificados ou substituídos de forma mais simples do que quando se trata de quadro próprio. Além disso, “facilita o processo de gestão de pessoas, pois se compra o serviço e a ineficácia do mesmo deve ser solucionada pela contratada, de quem são os empregados”.

Barbosa afirma que, no caso da USP, não dá para pressionar o empregador com uma campanha de denúncia como foi feito no caso Zara. A Universidade também tem responsabilidade pela condição de precarização de seus trabalhadores terceirizados, mas fica difícil produzir um discurso contrário à USP. ““O pessoal deixa de comprar roupa na ZARA, mas alguém vai deixar de estudar na USP? O bem que a USP fornece não é um bem de mercado”, observa.

Trabalhadores invisíveis (infográfico: Ana Carolina Marques)
(infográfico: Ana Carolina Marques)
União de Causas

A precarização dos terceirizados uspianos tem dado o que falar. No último dia 20, terceirizados da empresa BKM entraram em greve e ocuparam uma sala da Cocesp. A manifestação teve o apoio do movimento estudantil e do Sintusp. Já no dia seguinte, conseguiram receber o salário que estava há 15 dias atrasado.

No primeiro semestre deste ano, os trabalhadores da União, empresa que até então era responsável pela limpeza em diversas unidades, realizaram uma paralisação também devido ao atraso no pagamento dos salários.

“Os trabalhadores começaram a ficar preocupados porque dizia-se que a empresa estava falindo”, lembrou a ex-funcionária Glória de Oliveira, que se destacou durante as mobilizações. A União alegou na época que não tinha como pagar o que deveria e os trabalhadores já estavam inclusive cumprindo aviso prévio.

Após a greve e o repasse da verba da USP, os cerca de 400 funcionários finalmente receberam e foram demitidos. No entanto, a empresa ainda lhes deve 40% do que deveria ser pago. “As empresas fazem isso: você trabalha por anos e depois a empresa fala que faliu e não tem como pagar os funcionários”, diz.

Glória recebia menos de um salário mínimo na União. “Quando uma pessoa trabalha pra terceirizada, recebe menos que o salário mínimo. Na folha de pagamento é um pouco mais que o salário mínimo, mas com os descontos dá menos”, diz.

“Se a gente não tivesse feito o piquete na frente da Reitoria, a gente não ia receber porque eles também iam lavar as mãos”. De acordo com a funcionária, a Reitoria dizia que o assunto era responsabilidade da União, sendo que a verba estava nas mãos da USP.

Representação

“O nosso sindicato, o Siemaco (sindicato dos trabalhadores em empresas de prestação de serviços de asseio e conservação e limpeza urbana de São Paulo), muito pouco deu importância para o que a gente estava falando, então corremos atrás do Sintusp”, contou Glória.

Para o Sintusp, a terceirização é uma das formas mais emblemáticas de precarização do trabalho. “Os terceirizados recebem salários inferiores e sofrem com a  sobrecarga”, diz Marcelo Pablito, diretor do Sintusp. “Nós defendemos igualdade de direitos e salários entre terceirizados e trabalhadores da USP”. Os terceirizados não têm direito ao bandeijão, à creche, ao Cepe e ao Hosital Universitário.

Pablito explica que a terceirização é uma das formas que o capitalismo encontrou de recuperar a taxa de lucro, cortando gastos com direitos trabalhistas. “Continua sendo uma questão fundamental e prioritária a luta contra a terceirização, atacando um dos problemas que historicamente tem levado a maior precarização da classe trabalhadora em nível internacional”, diz.

O professor Barbosa, no entanto, questiona o quanto a posicição anti-terceirização pode ou não ser boa para os próprios terceirizados. “Se não houvesse, eles estariam empregados? Teriam conseguido emprego através de concurso?”.

Pablito explica que a proposta do Sintusp não é acabar com a terceirização fazendo com todos os trabalhadores sejam demitidos e as vagas sejam ocupadas através de concurso. “Queremos que esses trabalhadores sejam incorporados ao quadro da Universidade, já que demonstram no seu dia a dia que têm a capacidade para realizar as funções”, diz.

Extensão dos problemas

Percebendo o estado de invisibilidade dos trabalhadores terceirizados na USP, o SAJU,  grupo de extensão dos alunos da FD, abriram uma Frente Trabalho para lidar com a questão. Ainda em fase inicial, os alunos mostraram inúmeras dificuldades, principalmente no que diz respeito a aproximação com os funcionários. “O contato com eles é muito difícil, principalmente porque estão sempre trocando de Unidade”, comentou Mariana Gondo, aluna participante da Frente.

Os alunos comentaram também sobre a distância que separa esses funcionários da Universidade: “Parece que os administradores públicos não querem ter contato com o trabalhador. Eles não querem saber sua história de vida, quais são os problemas, se o trabalho está realmente sendo pago. Eles são só um número que estão usando um uniforme”, disse Paulo Yamamoto.

Tendo isso em vista, um dos projetos da Frente será uma pesquisa com os terceirizados, de forma a mapear quem são esses trabalhadores, de onde vêm, qual é sua história. Para o professor Souto Maior, “Essa pesquisa destina-se a dar continuidade aos debates sobre essa questão no seio da Universidade, para que a consciência alcançada na greve do ano passado não fique perdida e que os trabalhadores terceirizados não retornem ao estado de invisibilidade”

Barbosa concorda com a política, mas ressaltou que este é o tipo de iniciativa que deveria partir da própria Universidade: “é necessário um acompanhamento, uma prática de responsabilidade social, da mesma forma como a Zara agora está tentando se precaver de sua carreira produtiva. A melhor maneira de fazer uma política é o censo, e isso deveria ser uma atribuição da Universidade: pesquisa qualitativa para saber o tamanho do problema.”

Para o grupo, em geral, terceirizar é lavar as mãos: “Não existe nenhum motivo para você diminuir os seus direitos, que é um trabalhador como outro qualquer, não existe motivo para que tenha menos direitos que trabalhador contratado pela USP”, concluiu Paulo Yamamoto.

A voz dos invisíveis

Joana* é umas das três funcionárias da limpeza que ainda trabalha na FFLCH depois da paralisação no semestre passado. Diferentemente de Glória, optou por não continuar a briga na justiça pelo restante do salário que a União ainda deve: “Esse negócio é muito demorado, isso vai longe”, comentou.

Após a saída da União, a nova empresa O.O Lima ofereceu a permanência no posto para todos os funcionários que tivessem interesse, com direito ao Fundo de Garantia. Muitos, no entanto, optaram pelo Seguro Desemprego, e deixaram o trabalho. De acordo com Joana, o salário (cerca de um salário mínimo) permanece o mesmo. Assim como a carga horária a ser cumprida e a completa falta de relacionamento com a USP. Até o fechamento dessa edição, a O.O Lima não comentou sobre sua atuação na USP.

Claudio Oliveira dos Santos limpa banheiros e varre o pátio desde a troca de empresas. O morador do Riacho Doce, zona da comunidade São Remo atingida pelas enchentes semestre passado, trabalhava como limpador de vidros na Unip, de onde pediu para ser demitido a fim de comprar sua casa. O salário agora é menor, mas a moradia está garantida.

Marcelo, Carlos e Eduardo* são vigias no prédio da História há, respectivamente, 8, 5 e 2 anos.Trabalham para a empresa terceirizada EVIK, que, segundo dizem, nunca apresentou nenhum tipo de problema quanto ao contrato: os salários são pagos em dia, possuem vale transporte e alimentação e são representados pelo sindicato dos vigilantes. Porém, “não resolve muita coisa”, comentam, já que as conquistas do sindicato são pequenos umentos para salários já bastante reduzidos.

“Eu acho que todo trabalho é digno, mas o que eu puder fazer para não trabalhar mais como terceirizada, eu vou fazer porque a pessoa que trabalha na limpeza sofre muito.”, concluiu Gloria, que no momento está desempregada.

Para Souto Maior, os terceirizados da União “ainda não receberam a integralidade dos seus direitos e devem estar sofrendo as consequências pessoais da situação que a direção da USP, de forma irresponsável e desumana, ao se valer da intermediação, como forma de obtenção de mão-de-obra, lhes provocou”.

“Mas, ao menos na USP, nada será completamente como antes, pois basta que eles ‘gritem’ novamente, que todos os ouvirão. A comunidade uspiana está de prontidão!”, completa.

* Todos os funcionários entrevistados comentaram a ausência de diálogo com a reitoria, apontaram os baixos salários recebidos e optaram por não terem os nomes citados nesta matéria.

De braços cruzados: funcionários terceirizados se tornam visíveis ao deixar de recolher lixo na USP (foto: Arquivo Organização Fábrica Ocupada)
De braços cruzados: funcionários terceirizados se tornam visíveis ao deixar de recolher lixo na USP (foto: Arquivo Organização Fábrica Ocupada)