Promotoria investiga denúncias contra professores da Medicina

Curso pago ministrado em laboratório de ponta da Medicina USP gera suspeita de favorecimento na prova de residência do HC
Acusações de uso indevido do bem público e de vazamento de informações por professores da FMUSP alarmam estudantes (foto: Maria Clara Nicolau Vieira)
Acusações de uso indevido do bem público e de vazamento de informações por professores da FMUSP alarmam estudantes (foto: Maria Clara Nicolau Vieira)

Augusto Scalabrini Neto e Irineu Tadeu Velasco, professores da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), estão sendo acusados de usar indevidamente o Laboratório de Habilidades e Simulação (LabHab) da faculdade para sediar aulas de cursos particulares. Além disso, também existem denúncias de que os docentes tenham fornecido informações privilegiadas sobre a prova de residência do Hospital das Clínicas aos alunos desses cursos.

Velasco, que é ex-diretor da Faculdade e ex-presidente do Conselho Deliberativo do Hospital das Clínicas, divide seu tempo como professor da USP e docente responsável por três cursos pagos de extensão em Emergências Clínicas. Scalabrini, além de lecionar com Velasco, é supervisor do Programa de Residência Médica em Medicina Intensiva da FMUSP e membro da Comissão Organizadora desses cursos pagos.

A denúncia passou a ser de conhecimento público no começo do mês de setembro. Scalabrini era responsável pela coordenação do LabHab, mas diante das acusações pediu afastamento do cargo. “Tem uma coisa na vida que eu prezo mais do que qualquer outra: o meu nome. Eu não quero que venham me dizer que escondi documentação, que maquiei coisas. Se ao fim do processo, chegarem a conclusão de que sou inocente, terei o imenso prazer de voltar, até lá eu prefiro estar afastado do laboratório”, afirma.

Até agora, nenhum funcionário ou aluno assumiu a autoria da acusação. Mas o Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC) e a Diretoria da Faculdade já se posicionaram sobre o caso. Em cartas abertas, o CAOC e a Diretoria concordam sobre a suspensão do uso do Laboratório por esses cursos. O vice-diretor em exercício, José Otávio Auler, também solicitou a reelaboração da prova do Concurso de Residência Médica do HC.

(Infografia: Rafael Carvalho)

Novas provas?

A residência médica é uma modalidade de ensino de pós-graduação, muitas vezes, mais disputada que o vestibular, por isso, a denúncia do vazamento de informações sobre a prova causou furor nos estudantes. “Os alunos do sexto ano ficam desesperados com a prova de residência e dou toda razão a eles. As provas são difíceis, então, diante de qualquer coisa com cara de favorecimento, eles vão se rebelar”, diz Scalabrini.

Os alunos da FMUSP querem que seja proibida a participação de pessoas relacionadas a cursos preparatórios no planejamento, elaboração e realização de provas para os Programas de Residência Médica do HC. A Diretoria, em carta enviada ao CAOC, informou que todos aqueles que participaram da elaboração das provas e que tenham realizado atividades paralelas em cursos externos à Faculdade, foram afastados.

Por outro lado, o coordenador geral da residência do HC, Luis Yu, afirma que não aconteceu nada com a prova, e garante que o teste a ser aplicado em 27 de novembro é o mesmo de antes da denúncia e não será refeito. Em relação a Scalabrini e Velasco, afirma: “Eles não têm nada a ver com a prova. Nos cursos que ministravam, havia dois outros professores envolvidos com o exame. Não posso dizer seus nomes, porque a Comissão é sigilosa, mas eles foram afastados. E digo mais, isso foi feito só por prevenção, porque os cursos não eram preparatórios para a residência”.

O processo seletivo do HC consiste em 10% de análise de currículo e entrevista pessoal, 50% de prova teórica e 40% de prova prática que mede as habilidades dos candidatos. “Levantei os dados de quem frequentou o curso e o número mais frequente é de participantes formados em 2008. Ou seja, não são concorrentes nem alunos de cursinho”, analisa Scalabrini.

Uso do laboratório

O LabHab, assim como todos os laboratórios localizados na FMUSP, pertence oficialmente ao Hospital das Clínicas. Inaugurado em novembro de 2009, o laboratório é utilizado para aulas de “Simulação de Alta Fidelidade”. O ambiente replica três diferentes cenários: UTI, centro cirúrgico e enfermaria.  Há dezenas de manequins importados que oferecem realismo, pois ao reproduzirem reações humanas, permitem o treino de exames de diversas especialidades médicas e até entendem o que é dito em seus ouvidos.

O Laboratório é utilizado durante a semana para o treinamento de turmas de graduação, e também pode ser reservado para grupos de alunos e outros cursos. No entanto, os estudantes se queixam: “temos grande dificuldade para reservar e utilizar o LabHab para cursos de ligas acadêmicas e congressos. Mas para esses cursos em particular [extensão em Emergências Clínicas] parece que não houve dificuldades”, afirma Leonardo Gama, aluno do curso de Medicina e membro do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC).

“Eles têm dificuldades em usar o laboratório porque existem regras. Os alunos não podem chegar e dizer ‘eu quero usar amanhã’, pois o funcionário tem que preparar os bonecos e isso deve ser agendado”, explica Scalabrini. Além disso, de acordo com o professor, as pessoas que solicitam o uso do espaço devem estar devidamentente capacitadas para lidar com os equipamentos.

Contratos

Segundo Velasco, havia a intenção de firmar um acordo para regularizar o uso do laboratório através de um convênio com a Escola de Educação Permanente (EEP), pertencente ao HC. Décio Mion, diretor da Escola, foi quem sugeriu a parceria. “A intenção era tornar o curso ‘mais oficial’. O Conselho Deliberativo autorizou e quando íamos assinar, deu esse ‘bororó’”, comenta Velasco.

Cursos extras sempre foram permitidos na Universidade, vários dos quais pagos , organizados pelo Centro Acadêmico ou por outros grupos de alunos e docentes. “Basta declarar interesse em usar o espaço e pagar por ele. O fato de um professor ministrar o curso não implica que está fazendo algo errado, ou agindo de má fé”, afirma um professor da FMUSP que não quis se identificar. “Quanto custa o curso? Quanto é repassado à faculdade? Uma coisa é o uso indevido de informações privilegiadas. Outra, é o uso indevido de dinheiro”, completa.

Como o LabHab precisa se manter, a EEP permite que qualquer disciplina faça cursos aos finais de semana, desde que pague os materiais para manutenção do laboratório. “Não há uma regulamentação escrita para isso. Ninguém fez nenhuma tabela de preço até hoje,  a forma de pagamento é em material”, observa Scalabrini.

A suspeita

Com uma carga horária de 56 horas/aula distribuída em quatro finais de semana, os cursos de Emergências Clínicas são oferecidos para estudantes de medicina, médicos residentes ou que já trabalham em serviços de emergências por R$ 1.134,00.

Hoje, o portal MedAtual, o cursinho MedCel e a transmissora CBBW fazem parte de um só grupo empresarial e funcionam no mesmo endereço. Segundo cadastro na rede social profissional “V6”, a MedCel – Editora e Curso Preparatório, foi criada em 2005. A empresa desenvolveu um sistema de transmissão de aulas via satélite e via internet e devido ao sucesso desse método, o grupo decidiu criar a CBBW, uma empresa que oferece esse serviço de transmissão para diversos setores. A MedAtual é um desmembramento da CBBW que além de listar todos os cursos transmitidos pela empresa em um único site, também é uma central de atendimento e divulgação. “O problema é que lá também estão listados os cursinhos que a CBBW transmite. O único vínculo entre MedCel e MedAtual é o dono, na verdade nem o dono, um é o marido e outro é a mulher”, explica Velasco.

(infografia: Rafael Carvalho)

Os cursos oferecidos pela MedCel se consolidaram no mercado como os melhores preparatórios na área médica. Como o seu principal serviço é o cursinho para a prova de residência, o fato levantou a suspeita de que os cursos coordenados pelo professor Velasco estivessem sendo utilizados como preparação dos candidatos.

A suspeita foi reforçada pelo fato do professor Scalabrini fazer parte do grupo de docentes responsáveis pela elaboração da prova do Concurso de Residência Médica do HC. “Mesmo que eu tivesse pouco caráter e me envolvesse com cursinho, não seria de uma forma tão explícita. Eu só não consegui explicar isso para os alunos, ou pelo menos, que eles acreditassem nisso”, defende-se.

Medidas paliativas

Em carta enviada ao CAOC no dia 16 de setembro, a Diretoria da FMUSP informa que solicitou o cancelamento dos contratos com a empresa CBBW, a devolução de todo material gravado pela empresa e a suspensão das aulas de cursos externos à FMUSP no LabHab até a elucidação final dos fatos. No dia 28 de setembro, a Diretoria lançou a seguinte nota oficial:

Nota da Diretoria da FMUSP (arte: Ana Elisa Pinho)
Nota da Diretoria da FMUSP (arte: Ana Elisa Pinho)

“Eu tenho o dever funcional de sigilo sobre o caso por conta da própria legislação. Se houve irregularidade, vai ter apuração. Essas pessoas podem, inclusive, perder o cargo”, afirmou Rodrigo Rodrigues Pedroso, Procurador da Coordenadoria do Quadrilátero da Saúde. “Mantemos em sigilo primeiramente para resguardar a própria investigação, e depois pela integridade moral dos investigados”, completa.

As informações sobre os cursos de extensão foram retiradas do site da EEP, assim como o material didático da Escola e o logo do Hospital das Clínicas foram suprimidos do site da CBBW. A Diretoria propôs a criação de uma Comissão Consultiva, com ampla participação discente, para regulamentar o uso de todos os espaços didáticos da FMUSP.

“A tendência mundial nesses laboratórios é a autogestão, porque eles são muito caros. Então, o que fazer? Você vende cursos para financiar a manutenção”, diz Scalabrini. Velasco completa que se a situação não se resolver, as aulas práticas serão transferidas para o laboratório de simulação da Universidade Nove de Julho (Uninove). “O participante que já pagou pelas aulas, vai exigi-las”, complementa.

Alguns pedidos dos alunos continuam sem resposta. Uma das preocupações é que seja garantida a inscrição gratuita em todos os cursos oferecidos pela EEP, e que o uso do LabHab seja voltado, exclusivamente, a alunos de graduação e residentes do complexo HCFMUSP. A Diretoria só falará com a imprensa quando as medidas jurídicas já tiverem sido tomadas.

Prestação de contas (arte: Ana Elisa Pinho)