Quando a piada perde a graça e vira ofensa

“Comeria ela e o bebê”. Ao comentar a gravidez da cantora Wanessa Camargo, no dia 19 de setembro, o humorista Rafinha Bastos provavelmente não tinha noção da repercussão que sua piada causaria. O que deveria ser apenas mais um improviso do comediante na bancada do programa CQC acabou gerando uma grande discussão na sociedade acerca do papel do humor e de quais são os seus limites.

Após o programa, Rafinha foi afastado pela TV Bandeirantes. Seus colegas de programa se dividiram: Marco Luque repudiou a piada em comunicado. Já Oscar Filho fez um vídeo satirizando o ocorrido junto com Bastos. Wanessa e seu marido, Marcus Buaiz, entraram com uma ação por danos morais contra o humorista. Além disso, na capa de sua primeira edição de outubro, a revista Veja São Paulo proclamou Rafinha “o rei da baixaria”.

No último dia 12, Bastos pediu demissão da TV Bandeirantes, mas a emissora ainda não se pronunciou se aceita ou não o pedido. Dois dias depois, em seu perfil no Twitter, ele publicou a mensagem “Lá vamos nós amiguinhos”, junto a uma foto sua lendo classificados de empregos em um jornal.

Esse não foi o primeiro comentário de Rafinha a gerar polêmica. Em reportagem da edição de abril da revista Rolling Stone, foi divulgada uma piada de Rafinha sobre mulheres estupradas durante seu show de stand-up: “toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia… Homem que fez isso não merece cadeia, merece um abraço”. Na época, o Conselho Estadual da Condição da Mulher de São Paulo entrou com uma representação no Ministério Público Estadual por causa do gracejo.

Lia Segre, do coletivo de mulheres da ECA, diz que a piada de Rafinha Bastos foi agressiva e violenta. “Ao falar que alguém será comido, você está a priori desrespeitando a pessoa, sendo agressivo e violento para com ela”. Na opinião dela, a situação é mais grave pois Wanessa não foi a primeira mulher a quem se dirigiu estes termos. “Falar que vai comê-la não foi algo pontual, desligado da nossa história, da subjetividade machista dos brasileiros. Foi um ato histórico, e isso ofende a todas as mulheres, porque todas estão sujeitas a violências e agressões sexuais em muitos espaços de nossas vidas”, explica.

Em entrevista concedida ao programa Adnet ao vivo no dia 23 de junho, antes de toda a discussão sobre a piada, o humorista disse que sua imagem de pessoa polêmica foi criada e não condiz com a realidade. “Na verdade eu falo o que acho engraçado e às vezes minha cabeça pensa coisas absurdas que não necessariamente são minha opinião pessoal a respeito dos assuntos. Mas eu acho importante falar, a gente tem que rir. Entre amigos a gente ri dos maiores absurdos, por que não proferir isso?”, disse Rafinha.

Segundo Elídio Sanna, da Cia. Barbixas de Humor, a discussão atual acerca do humor saudável. Ele é amigo pessoal de Rafinha, que em diversas vezes participou como convidado de espetáculos dos Barbixas. Ele justifica o colega: “Esse escândalo vêm se fazendo por conta de uma piada, no caso do Rafinha, de roda de amigos, que ele acabou soltando no ar por ser ao vivo. Eu conheço ele, não teve essa intenção. Ele não teve uma preparação, como muitas vezes acontece. Foi quase uma frase pronta”.

Ao chocar a sociedade, a piada de Rafinha serviu para colocar ainda mais lenha na fogueira na discussão sobre a liberdade de expressão dos humoristas e a ética na profissão. Além disso, fez muita gente se perguntar: qual é, afinal, a função do humor?

História do humor

“O humor está presente na civilização desde as sociedades mais primitivas – ele é uma capacidade que o ser humano tem de olhar a realidade e ressignificá-la, tornando-a algo engraçado e conferindo-lhe olhar crítico. No passado, ele era até uma forma de sobrevivência às adversidades e de união do grupo”, de acordo com o professor da Escola de Comunicações e Artes, Ricardo Alexino Ferreira.

Alexino conta que, a partir dos anos 40, os humoristas passaram a retratar frequentemente de forma pejorativa grupos minorizados da sociedade, como negros, mulheres, idosos e deficientes. Segundo ele, os comediantes consideraram esse humor fácil, pois muitas vezes se limitava a imitar essas pessoas. “Parte do humor se tornou sem repertório e um reforçador de estereótipos, uma caricatura do ‘outro’”, diz.

Brincadeira

Daniel Nascimento, outro humorista da Cia. Barbixas de Humor, diz que para ele, na atualidade, existem três tipos de humor. O clown que ri de si mesmo e encontra saídas inusitadas para tomar atitudes, tendência que ele e os Barbixas seguem; o bufão, que gera o riso apontando para os outros, para o que acha errado ou ridículo, e consegue trazer isso para todos de forma engraçada; e o non sense. “Atacar alguém está longe de ser uma obrigação para quem faz humor. Porém nenhum desses estilos é menor que o outro. Os três têm funcionado mais ou menos dependendo do público e da época”, afirma o comediante.

Para Nascimento, o humor não deve ter limites. “Quem os determina é o humorista. Tem que saber equilibrar inteligência, criatividade e o seu tempo”, afirma. Sanna, diz que o humorista faz a piada, mas cabe ao público avaliá-la. “Se a piada não for boa, as pessoas não vão rir”.

(Infografia: Bruno Federowski)

Limite

Recentemente, o humor tem se destacado mais pelo desrespeito que pelo riso. A situação de Rafinha teve grande repercussão, mas existiram outros casos como a Casa dos Autistas, o quadro Metrô Zorra Brasil no Zorra Total e o programa Pânico na TV (ver infográfico). Até onde “brincar” com a diferença pode ser tolerável?

Alexino afirma que é preciso ouvir os grupos retratados no humor para se estabelecer um limite. Caso a piada seja considerada uma brincadeira saudável, não há problemas. Porém, caso seja considerada agressiva, todo conteúdo do programa deveria ser analisado, correndo o risco de suspensão. “A medida para um humorista ser ético é ele saber até quando pode brincar com determinado grupo sem ofendê-lo, se passar disso é chacota e agressão. Isso não é censura, é uma questão de respeito”.

Lia Segre, do coletivo de mulheres da ECA, tem opinião similar. “Quem escolhe o limite do humor é quem sofre o preconceito. Por exemplo, não sou eu que vou decidir pelo meu colega cadeirante o que ele tolera ou não de gracinhas. Ele que vai estabelecer esse limite”, afirma. Para ela, o tipo de piada que ridiculariza certos grupos, principalmente quando é veiculada em grandes veículos de comunicação, incentiva relações desiguais na sociedade.

Lia cita um texto do blog de Daniel de Barros, médico do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, no site do jornal O Estado de S. Paulo. No texto, ele comenta os resultados do estudo norte-americano Mais do que só uma piada: a função liberadora-de-preconceitos do humor sexista, de Thomas E. Ford (Western Carolina University), Christie F. Boxer (University of Iowa), Jacob Armstrong e Jessica R. Edel (Western Michigan University) publicado em 2007. “Segundo o estudo, o humor não faz ninguém assumir posturas contrárias a suas crenças, mas tem o poder de criar um ambiente onde determinadas posturas preconceituosas parecem mais socialmente aceitas. E isso tem um impacto real no comportamento das pessoas”, diz Barros em seu blog.

Alexino afirma que o humor depreciativo faz sucesso pois crê que “a natureza humana é meio perversa”. Ele completa: “As pessoas querem destruir o outro e colocam nele estereótipos para se preservarem. Se faço uma piada sobre o outro, não sou o alvo dela. Em termos sociais isso é catastrófico, porque reforçam-se preconceitos e estereótipos”.

O pesquisador ainda afirma que há relação direta entre o humor da mídia e o bullying praticado nas escolas. “O tempo todo há quadros discriminativos na televisão. As crianças repetem discursos que veem como legitimados pela sociedade. Se a própria mídia reforça esses estereótipos, fica claro porque casos de bullying e agressividade na escola são comuns”, explica.

Ainda que ofensivas, as piadas de Rafinha e de outros comediantes criam ambiente propício para que a sociedade reflita melhor sobre o humor e como ele interfere noa relação entre as pessoas. É o que crê Sanna: “Apesar das conseqüências ruins, e de todo esse barulho, é interessante ter essa discussão”. Nascimento prossegue nessa linha: “agora todo mundo quer saber sobre o que pensamos a respeito. E isso é muito saudável”.