“Não somos um bando de burguesinhos”

Presos durante ação da PM no prédio da reitoria questionam a imagem que a grande mídia passou do movimento e esclarecem dúvidas dos leitores

O Jornal do Cam­pus conversou com cinco das 73 pessoas detidas durante a operação de reintegração de posse da reitoria, no dia 8 de novembro.

Os estudantes da FFFL­CH, Fernando “Pardal”, Rosi (que preferiu não ser identificada pelo sobreno­me), Alexandre Guimarães, Natália Pimenta e Rafael Padial, que se consideram “presos políticos”, respon­deram às questões da equi­pe do JC e às perguntas enviadas pelos leitores.

 Os leitores perguntam

Por que esses jovens não se rebelam contra tantos episódios de corrupção e impunidade que temos no Brasil?
Fernando “Pardal”: A es­trutura de poder na USP é altamente corrupta. Na ocupação da reitoria, en­contramos um documento com a compra de um ta­pete por R$ 32 mil. A USP passa por um processo de privatização, do qual os professores do Conselho Universitário se benefi­ciam. A mobilização dos estudantes é contra a cor­rupção sim, mas dentro da Universidade.
Rosi: O Rodas foi decla­rado persona non grata na Faculdade de Direito por questões de corrupção e mal gerenciamento do bem público. Ele é inves­tigado pelo Ministério Público pela contratação de funcionários sem con­curso público. O movi­mento já estava articulado para combater esse tipo de denúncia.

Por que o estopim foi jus­tamente esse episódio da maconha e não outros fatos mais sérios que deveriam mobilizar essa mesma ju­ventude?
FP: A polícia já está no Campus faz tempo. Desde que a Reitoria assinou o convênio com a PM, em se­tembro, houve vários casos de repressão intensa por parte da polícia. No dia 27 de outubro, várias pessoas presenciaram o enquadro aos estudantes na FFLCH e começaram a questionar o que estava acontecendo.
Natália Pimenta: O movi­mento de indignação com a atitude da PM foi massivo e espontâneo. A questão não teve nada a ver com a maconha, mas sim com o fato de eles serem presos, uma interferência inacei­tável dentro do Campus.
R: O mal estar já existia antes desse episódio da maconha. Na rua do Ma­tão, a PM sequer passa. Fica no Crusp e na FFLCH para regular os estudantes. O caso poderia ter sido enca­minhado primeiramente à direção da USP para que se tomassem providências. O movimento que ocorreu ali deu vazão a toda repressão que os estudantes já sofre­ram. Foi o estopim, a faísca.

Vocês estudavam durante a ocupação? Que atividades vocês realizavam?
FP: Era difícil [estudar], porque a ocupação exi­ge uma dedicação mui­to grande, mas eu tentei manter meus estudos da maneira como foi possí­vel. Criamos comissões de organização interna e de diálogo com a Univer­sidade. Fazíamos debates sobre o papel da polícia. Havia oficinas, atividades culturais e assembleias para decidir os rumos do movimento.
R: Na semana da ocupa­ção da reitoria, eu tinha seminário para apresentar. Levei uma barraca [para a ocupação] e estudava den­tro da barraca. A comissão de segurança cuidava para que ninguém entrasse na reitoria, quebrasse alguma coisa ou roubasse, preju­dicando a imagem do mo­vimento. Houve um caso, por exemplo, de skinheads rondando a reitoria.
Alexandre Guimarães: Professores eram convi­dados para dar aulas em locais próximos [à ocupa­ção]. Houve a tentativa de mostrar para a população que a luta que se travava ali era justa e tinha pontos que abrangiam a sociedade.

Como vocês querem maior segurança no Campus se não querem a PM dentro?
R: O Brasil é um dos pou­cos países onde a PM não foi dissolvida após o regi­me militar. Nossa polícia é a que mais mata no mun­do. Isso é segurança? Não houve discussão quando o reitor trouxe a polícia para dentro do Campus. A presença da PM é também uma questão política, por­que já havia um processo de perseguição aos mo­vimentos de luta. Com a presença da polícia aqui, a USP corre o risco de se tornar um local sem crítica alguma, de formar pessoas apenas preocupadas com sua vida acadêmica e não com a sociedade. A desocu­pação da reitoria mostrou a verdadeira razão pela qual a polícia está aqui.

O JC pergunta

Por que a sociedade enca­rou a ocupação como o mo­vimento de uma minoria e a relacionou à questão da maconha?
AG: A discussão sobre a liberalização da maco­nha era minoritária perto de outras propostas que existiam, mas a mídia, em geral, a tratou como a principal reivindicação do movimento. Fica mais fácil fortalecer o argumento de que quem ocupou a reito­ria pertencia a um grupo privilegiado reduzindo as reivindicações a fumar maconha dentro da bolha da Universidade.
NP: Houve uma mani­pulação por parte da im­prensa, mas acredito que o argumento deles tenha se enfraquecido bastante depois que aconteceram assembleias com milhares de estudantes, que delibe­raram a greve.

Um dos eixos da greve é a revogação de todos os processos administrativos abertos contra alunos e funcionários. Do que tra­tam esses processos?
FP: A maioria dos proces­sos foi instaurada em 2010 e é referente à retomada da moradia estudantil, no bloco G do Crusp. Alguns são pela ocupação da reito­ria em 2007. Os processos são abertos com base em um decreto do estatuto da USP, de 1972, que tem o es­pírito da ditadura militar. Ele autoriza a abertura de processos contra estudan­tes que atentem à moral e aos bons costumes, que façam panfletagem, pro­paganda política, partidá­ria, racial ou religiosa. De acordo com o estatuto, os processos são legais. É um absurdo que 30 anos após o fim da ditadura, ele continue valendo.
R: No início de 2011, por exemplo, alguns estudan­tes jogaram papel sujo na FFLCH para mostrar apoio à greve dos trabalhadores terceirizados. Eles são pro­cessados por depredação do patrimônio público, mas, na verdade, foi um ato político.

Quais são os pontos mais fortes da mobilização atual em toda a USP? E os mais fracos?
FP: Uma das coisas fun­damentais é o número de estudantes que está participando dessa mo­bilização. O comando de greve é um instrumento forte para manter a greve democrática e organizada. Mas ainda existem corren­tes políticas dentro do mo­vimento estudantil, que enfraquecem a democracia da mobilização. Também temos problemas em ca­pilarizar o movimento e em dialogar para fora [da USP]. Precisamos fortale­cer iniciativas como os atos na rua, as aulas públicas, a panfletagem no metrô.
R: O maior problema não é o movimento em si. A mobilização é crescente e positiva. O que o dificulta é o isolamento que a mí­dia tem feito em relação às nossas pautas. A maior dificuldade é fazer com que a mídia mostre o nosso movimento como de fato ele é, e não como um ban­do de baderneiros.
Rafael Padial: As assem­bleias lotadas são boas, por um lado, pois mos­tram que há muita gente entrando no movimento. São ruins, por outro, pois evidenciam que as formas de organização que te­mos atualmente não são suficientes e precisam ser repensadas. O comando de greve foi a solução en­contrada. Acredito que isso anuncia um novo mo­vimento estudantil, que não é dos burocratas em suas salinhas com assun­tos totalmente desligados da realidade. É a organi­zação dos estudantes de cada curso discutindo as questões imediatas, fun­damentais, e votando. É o nascimento de algo novo que vai fazer o movimento estudantil sair do maras­mo em que se encontra há anos.
AG: O movimento da USP se superou em três pontos principais este ano. O pri­meiro é o fato de termos, agora, uma organização muito democrática: o co­mando de greve. Outro ponto foi termos chegado na discussão da organiza­ção estrutural da Universi­dade. O terceiro é a atitude dos alunos de mostrar às pessoas de fora da USP que não estão defenden­do apenas seus próprios interesses.

Vocês consideraram a ocu­pação da reitoria legítima?
FP: Dizer que a ocupa­ção foi ilegítima fortalece um argumento que vem de fora da USP, de que a mobilização parte de uma minoria radical. Quando a proposta de continuar a assembleia para votar a ocupação da reitoria foi encaminhada à mesa, ain­da havia 500 estudantes [na assembleia]. A mesa, por perceber que perderia a votação, encerrou arbi­trariamente a assembleia, sem respeitar a democra­cia. Muitas pessoas vo­taram a desocupação da diretoria da FFLCH antes, porque queriam a ocupa­ção da reitoria.
R: Se a maioria decidiu que a assembleia deve conti­nuar, não é um pequeno grupo de pessoas que pode determinar seu término. Esse grupo saiu porque não concordou com a pau­ta que havia sido proposta. Havia condições de con­tinuar a assembleia. Em nenhum momento o setor que se retirou consultou a plenária para cancelar a assembleia.

O quão violenta foi a ação de reintregração de posse do prédio da reitoria?
FP: Sinceramente, eu não esperava que fosse aconte­cer algo dessa proporção de violência dentro da USP, por mais que o reitor seja historicamente trucu­lento. Não foi violenta só pelo número de policiais, mas pelo modo como fo­mos tratados: ameaças, intimidações, tortura. Arrastaram pessoas para dentro da ocupação para serem presas. Nos manti­veram sentados enquanto os próprios policiais pega­vam marretas e destruíam a reitoria: quebraram por­tas, vidros, impressoras, implantaram coquetéis molotov. Uma farsa jurí­dica absurda.
NP: Só o fato de ter 400 policiais já caracteriza a ação como não pacífica. No Crusp, impediram as pessoas de sair e jogaram bombas de gás.
RP: O fato de ter uma pes­soa com uma arma de fogo apontada para sua cabeça não é pacífico. Por meio da demonstração brutal de força, os policiais deixaram claro que os estudantes não teriam como reagir. Os es­tudantes não abandonam seus ideais. Lutariam se fosse possível.
AG: A tortura psicológica foi muito grande, princi­palmente com as mulheres. Para mim, a intenção da reitoria era que [a operação] fosse a mais pacifica possí­vel, mas em se tratando da polícia militar brasileira, os efeitos colaterais existem. A intenção era não tratar os estudantes como lixo, mas eles agiram da maneira como estão acostumados.

Ocupantes da reitoria são encaminhados à delegacia depois da reintegração de posse da reitoria (foto: Ilda Costa Silvério)
Ocupantes da reitoria são encaminhados à delegacia depois da reintegração de posse da reitoria (foto: Ilda Costa Silvério)

Como vocês vêem o paga­mento da fiança pelos sindi­catos e movimentos sociais?
FP: Se não fossem as en­tidades sindicais, podería­mos estar presos até agora. Essas entidades têm cons­ciência de que a luta não é só dos estudantes: é de to­dos aqueles que defendem a democratização da USP. Qualquer um que defenda a liberdade de expressão e a democracia tem a obri­gação de estar na linha de frente da campanha pela anistia dos 73 presos.
R: Quem pagou a fiança de todos foram o Sintusp (Sin­dicato dos Trabalhadores da USP) e a Conlutas (Cen­tral Sindical e Popular). Isso mostra que, ao contrário do que a mídia dizia, os ocupantes da reitoria não eram um bando de “bur­guesinhos” lutando para fumar maconha. Era um movimento político com respaldo nacional.

Como os processos por deso­bediência civil e depredação do patrimônio público serão encaminhados?
FP: Estamos em fase de inquérito. Não teremos certeza de que tipo de pro­cesso sofreremos, até que sejam abertos. Montamos uma comissão jurídica com advogados militantes, que estão nos apoiando e to­marão as medidas cabíveis. Não temos a ilusão de que conseguiremos escapar dos processos exclusivamen­te pela linha jurídica. Foi apoiada, em assembleia geral dos estudantes, uma campanha nacional pela anistia dos 73 presos, que representa a criminalização generalizada dos movimen­tos sociais no Brasil. Se um estudante da USP, branco, pode ser preso e crimi­nalizado, isso fortalece a perseguição política a to­dos os lutadores do país. Já temos um abaixo-assinado, escrito pelos professores Souto Maior e Luiz Renato Martins (Luizito).

Vocês consideram as picha­ções no prédio da reitoria como depredações do pa­trimônio público?
FP: Não. Os estragos que os movimentos acabam causando são pagos por nós mesmos. Particula­mente, não acho que de­veríamos ter pintado as paredes da reitoria, porque isso cai mal para a opinião pública. Não se questiona o que o Rodas fez com a biblioteca da Faculdade de Direito, por exemplo. Isso é depredação do patrimônio público.
R: Aquilo é tinta a guache, sai com água. As pinturas na parede eram parte da negociação com a reitoria: nós avisamos o que havia sido feito, e eles propu­seram a condição de que, quando saíssemos do pré­dio, as paredes estivessem limpas. Nós concordamos, mas a negociação aca­bou antes que tivesse sido concluída, e a polícia foi acionada.