Semana do baseado: apologia ou debate?

A Semana Barba Bigode e Baseado, organizada por estudantes do coletivo FUMA (Frente Oceana de Mobilização Antiproibicionista) propôs a discussão sobre a descriminalização e legalização das drogas por meio de debates acadêmicos e atividades lúdicas, gerando polêmica na opinião pública, dentro e fora da Universidade
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Poder discutir mudanças na lei é a essência da democracia – Pedro Abramovay
Alguém contra a legalização precisaria ter espaço na Semana – Arthur Guerra


Poder discutir mudanças na lei é a essência da democracia

Pedro Abramovay é formado em Direito pela USP e ex-secretário Nacional de Políticas sobre Drogas

Jornal do Campus: O senhor considera a Semana Barba, Bigode e Baseado apologia às drogas?
Pedro Abramovay: Se a semana não está incentivando usar, mas debater as consequências das questões sobre as drogas, não é apologia. É a própria essência da democracia poder discutir oportunidades de mudanças na lei e políticas públicas. O Supremo Tribunal Federal deixou isso claro na questão da Marcha da Maconha, afirmando não poder proibir uma manifestação pública que pedia uma mudança na lei. Atentar contra esse tipo de manifestação atinge o coração da democracia, que é a possibilidade de a minoria ser ouvida, e tornar maioria.

JC: Qual o principal motivo que se tem no Brasil hoje pra defender a descriminalização das drogas?
PA: São as injustiças causadas pela lei atual, que recai de maneira desigual sobre a população. Sobre as pessoas ricas, que não são incomodadas pela polícia, ela tem um efeito mínimo. Já a população pobre sofre com a violência e com a prisão de maneira brutal. Se o país pretende reduzir a desigualdade, não pode aprovar uma lei que provoca tanta injustiça.

JC: Por que isso acontece?
PA: O usuário no Brasil ainda é criminalizado e vai preso. A diferença é que não há nenhum critério objetivo que defina quem é usuário e quem é traficante. Na prática, muitas vezes, acaba sendo um critério social. Tem muitos casos em que pessoas pobres usuárias acabam sendo presas como traficantes: quando pobre, ela é considerada traficante, quando não, é considerada usuária.

JC: Só a descriminalização do usuário já seria um avanço nessa questão?
PA: Temos que tomar muito cuidado com medidas parciais. Mas nos países em que de fato descriminalizaram o consumo, o efeito foi muito positivo. Significa não tratar o usuário de drogas na perspectiva criminal, permitindo o tratamento na perspectiva da saúde e da assistência social.

JC: Como tratar drogas distintas, como a maconha e o crack, na mesma legislação?
PA: Você não pode punir criminalmente alguém que está causando um mal a si mesmo. O direito penal é para quem causa mal a terceiros. Então, do ponto de vista do usuário, eu acho que deve ser descriminalizado pra todo mundo.
Sobre a venda, tem que se discutir aos poucos. Tem remédio tarja preta e outros que você compra no supermercado. Então tratamos diferentemente drogas com consequências diferentes. Hoje as pessoas consomem o quanto elas quiserem de drogas proibidas. Se mais drogas forem permitidas, é possível ter um controle maior sobre isso.

JC: Por que a opinião pública não condena o consumo livre de álcool e tabaco?
PA: Há um interesse econômico por trás da propaganda, que acaba convencendo as pessoas a esse consumo. Mas não tem sentido liberar o álcool, fazer propaganda na televisão e proibir e criminalizar quem usa maconha. Existem artigos publicados comprovando que álcool e cigarro são drogas que causam danos muito mais sérios do que a maconha. Temos que partir do mesmo princípio: regular mais o comércio de álcool e tabaco e proibir suas propaganda e regular de maneira mais inteligente drogas como a maconha.

JC: Como o senhor avalia a questão do estado garantir tratamento para os dependentes químicos?
PA: O tratamento de dependentes químicos é responsabilidade do estado de qualquer maneira. Legais ou ilegais, o estado tem que lidar com esse problema porque o acesso à saúde é um direito universal. Partindo de um princípio que não vai haver o aumento do consumo no caso da descriminalização, a exemplo dos países que fizeram isso, haverá políticas mais efetivas para garantir um tratamento melhor os dependentes.

JC: O argumento do uso medicinal da maconha é valido no debate da legalização?
PA: A sociedade foi privada de conhecer os efeitos positivos das drogas durante muitos anos, porque o preconceito era grande e não se podia fazer pesquisa. Médicos e cientistas defendem o uso da maconha como melhor tratamento para pacientes com glaucoma, Alzheimer e para os que fazem quimioterapia. Os efeitos colaterais são bem menores comparados aos tratamentos tradicionais. Isso acontece nos EUA e na Europa. No Brasil ainda não é admitido. Quando você vê senhoras usando maconha para fins medicinais, gera uma tolerância maior. Não é um bicho de sete cabeças. Isso fez com que hoje, nos EUA, a maioria da população seja favorável à legalização da maconha, pela primeira vez.

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Alguém contra a legalização precisaria ter espaço na Semana

Arthur Guerra é coordenador do Programa Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas

JC: O senhor considera a “Semana Barba, Bigode e Baseado” apologia ao uso de drogas?
Arthur Guerra: A discussão sobre as drogas é necessária, pois falta debate sobre o assunto na nossa sociedade. Mas debate requer pontos diferentes em discussão – se não há divergência, falamos de um evento. A Universidade é um espaço livre, mas desconfio de que, se houvesse alguém contra a legalização, essa pessoa não teria espaço para defender esse outro lado.

JC: Quais os efeitos biológicos resultantes do uso de maconha?
AG:
Não é verdade que a maconha é uma droga leve – ela causa dependência. O uso da maconha permite ao indivíduo entrar em contato com outras drogas mais fortes. A cada dez jovens que usam maconha, um desenvolve dependência. A maconha não contribui para uma formação adequada do cérebro do jovem, que está em processo de desenvolvimento.

JC: Para o senhor, a maconha deve ser classificada do mesmo modo que outras drogas?
AG: As drogas não estão no mesmo balaio. Há quem consiga ter uso moderado da maconha, mas não conheço ninguém que use ocasionalmente o crack ou a cocaína.
Mas a maconha não é inócua – ela é perigosa. Na parte sexual, o uso crônico dessa droga pode levar inclusive à diminuição da produção de espermatozoides. Em um ambiente estudantil competitivo, o jovem usuário de maconha conseguirá se manter focado, concentrado e manter bom rendimento? No aspecto esportivo, o uso de maconha vai deixar o cara mais ligado e competitivo, com reflexos mais rápidos? Não, ela ocasiona justamente o contrário.
No caso da maconha, ocorre o que chamamos de “síndrome amotivacional”. Após um uso de, em média, dois anos, o usuário passa a se reunir com outros usuários e todos ficam numa rotina de pouca motivação para estudar, trabalhar, praticar esportes.

JC: Mas remédios psicoativos também não causam dependência?
AG: Isso ocorre com os opióides, droga usada para controlar a dor, mas é uma dependência mais controlável – você deve comprar o remédio, ter prescrição médica e usar por tempo determinado. Se a maconha fosse usada em seu princípio ativo seria um caso, mas o que se defende é o uso dela como cigarro. Quem defende a legalização não defende comprimido, mas o ato de fumar.

JC: Para o senhor, deve haver descriminalização do usuário de drogas?
AG: Hoje, a lei prevê punição ao traficante – e não ao usuário. Quem usa não deve ser considerado criminoso e, a meu ver, usar drogas não deveria ser rotulado como crime. Como médico, se há um indivíduo dependente de uma droga, vejo-o como doente. Ele precisa de tratamento, diagnóstico, medicamentos, apoio psicoterápico e familiar.

JC: Quanto à legalização das drogas e atuação do Estado sobre o comércio? O senhor é a favor?
AG: Em todo o mundo, não existe o Estado tomando conta de drogas. Fui à Holanda no ano passado: pode-se comprar a droga, mas essa compra não é oficial, não é feita com mediação do Estado – não há recibo nem controle de qualidade sobre a maconha vendida. A venda é tolerada, mas não legalizada. No Brasil, não acredito que seria possível, pois há muita corrupção. Pergunto-me como seria o supervisionado o comércio – se vendida em farmácias, haveria controle para a maconha não ser vendida a menores de idade? Tenho minhas dúvidas.

JC: A seu ver, a descriminalização do uso de drogas poderia ter um efeito econômico, já que o dinheiro gasto pelo Estado poderia ser empregado em tratamento de dependentes?
AG: O problema não é falta de dinheiro – no centro da cidade de São Paulo, há centros de reabilitação com leitos vazios. Não adianta haver centros se o dependente não se ver como doente e não ver que precisa de tratamento. Por isso o atendimento médico e psicossocial é fundamental.

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