Comissão da Verdade suscita debates na USP

Para especialistas, Comissão da Verdade garante direito à memória e é importante para o fortalecimento da democracia brasileira

Instalada pela presidente Dilma Rousseff em maio deste ano, a Comissão Nacional da Verdade terá como objetivo “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos” praticadas entre 1946 e 1988, “a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”. “Não nos move o revanchismo, o ódio ou o desejo de reescrever a história de forma diferente, e sim a necessidade de conhecê-la em sua plenitude, sem ocultamentos”, afirmou a presidente em seu discurso, na cerimônia de instalação.

Composta por sete integrantes escolhidos pela presidente, a Comissão deverá, nos próximos dois anos, analisar casos de torturas, mortes e desaparecimentos, além de identificar e tornar públicos os locais, as instituições e as circunstâncias relacionadas a violações de direitos humanos no país no período da ditadura civil-militar. Segundo o artigo 4o da Lei 12.528/2011, os seus integrantes poderão ter acesso a todos os arquivos do poder público referentes ao período, mesmo que sigilosos, além de promover audiências públicas e convocar para entrevistas ou testemunhos, em caráter não-obrigatório, pessoas possivelmente envolvidas. Ao fim de dois anos, a comissão apresentará um relatório a partir das informações apuradas, que poderão auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais dos desaparecidos políticos. O site www.desaparecidospolíticos.org.br, que compila informações sobre ditaduras militares de diversos países latino-americanos, totaliza 379 registros de desaparecidos no Brasil.

(charge: Luiz Ferrarezi)
(charge: Luiz Ferrarezi)
Histórico

A criação da Comissão foi proposta no 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, assinado pelo ex-presidente Lula, em dezembro de 2009. Antes dela, foram instituídas duas comissões: de Anistia e Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, durante os governos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Diferentemente das duas comissões anteriores, a Comissão Nacional da Verdade poderá identificar pessoas e instituições estatais responsáveis pelas mortes, desaparecimento ou torturas. “Assim, ela pode complementar os esforços iniciados pelas outras comissões que já produziram muita verdade histórica. Além de reconhecer autores das violações, ela terá o poder de propor reformas que garantam sua não-repetição”, diz Paulo Abrão, secretário Nacional de Justiça e presidente da Comissão de Anistia. Segundo ele, as três comissões trabalharão de forma integrada: “Nosso trabalho visa a garantir que cada comissão se aproprie de tudo o que for produzido pelas outras, a fim de avançar ainda mais no processo de Justiça de Transição no Brasil”.

Polêmicas

Um aspecto polêmico sobre a Comissão Nacional da Verdade refere-se à Lei da Anistia (nº 6.683/1979). Em 29 de abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou o pedido da Ordem dos Advogados do Brasil de revisão do primeiro parágrafo da lei a fim de excluir da anistia crimes praticados por agentes do Estado. “Mas, alguns meses após a decisão do STF, que manteve a interpretação benéfica aos torturadores, a Corte Interamericana de Direitos Humanos determinou que deixar de processar e julgar agentes do Estado constitui violação da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário e que possui hierarquia superior a qualquer lei nacional”, explica Deisy Ventura, professora do Instituto de Relações Internacionais (IRI).

A professora questiona também os critérios de escolha dos integrantes da Comissão, afirmando que deveria ter existido um mecanismo de consulta da sociedade, principalmente dos familiares de mortos e desaparecidos. “Embora eu seja grande admiradora de alguns deles, devo admitir que escolha dos integrantes foi pessoal, conforme o desejo e ao cálculo político da presidente Dilma”. Vera Paiva, professora do Instituto de Psicologia (IP) e filha de Rubens Paiva (deputado federal desaparecido desde 1971), pensa de outra forma. Ela acredita que seria mais difícil debater se houvesse militares e familiares de desaparecidos na Comissão: “É uma decisão difícil e é importante entender que a ação da Comissão depende também da pressão popular. Deve haver um debate público aberto sobre o que ela deve ou não ser”.

O caráter não-punitivo da Comissão é outro aspecto que suscita debates. “Ninguém, a serviço do Estado, pode torturar e matar quem com ele tem divergência política. A impunidade hipoteca o futuro do Brasil, em todos os campos”, opina Deisy Ventura. Ela explica que a ideia central do direito penal internacional é a de que os governantes devem saber que, embora detenham o poder num dado momento e lugar, serão um dia julgados caso abusem desse poder. “Porém, mesmo sem caráter punitivo, nada impede a Comissão de enviar todos os documentos e informações que apurar ao Poder Judiciário, para que ele tome as devidas providências”, complementa.

Outra discussão refere-se à investigação de violações cometidas pelos “dois lados”, ou seja, pelos militares e pelos opositores. Segundo Paulo Abrão, a Lei de Segurança Nacional, de 1983, criminalizou os atos de resistência, enquanto os crimes cometidos pelo Estado não foram investigados. “É absurdo afirmar que, para que se investiguem os crimes do Estado, seria necessário investigar pela segunda vez os crimes da resistência”, diz Abrão. A professora Deisy Ventura complementa: “Quando há ruptura da ordem democrática e restrição das liberdades individuais, é natural que haja resistência. Assim, não há como comparar quem resiste a uma ditadura com quem utiliza o aparato do Estado para expulsar pessoas do país, torturar e até matar cidadãos brasileiros”.

Para Vera Paiva, não existem dois lados e o foco da questão é a violência do Estado. “Práticas de tortura e desaparecimentos são adotadas ainda hoje por policiais. É preciso identificar quem são os Erasmos Dias da atualidade”, explica a professora, em referência ao coronel que, como secretário de Segurança Pública de São Paulo, comandou a invasão da Pontíficia Universidade Católica de São Paulo que culminou na prisão de 1.100 estudantes, em 1977.

“São sinais de que o direito à memória foi apropriado pelos jovens como um direito deles”, diz Paulo Abrão sobre os escrachos populares (foto: Paulo Iannone)
“São sinais de que o direito à memória foi apropriado pelos jovens como um direito deles”, diz Paulo Abrão sobre os escrachos populares (foto: Paulo Iannone)
Significado histórico

Para juristas e familiares de vítimas da ditadura militar, a importância da Comissão da Verdade se relaciona à construção da democracia a partir do direito à memória. “O corpo é um elemento importante nos rituais de luto. O desaparecimento do corpo é traumático, pois o indivíduo é quem decide (simbolicamente) a data da morte. Eu enterrei meu pai somente dez anos após ele ter sido levado, quando já não acreditava mais que ele pudesse estar vivo”, diz Vera Paiva.

Fábio Konder Comparato, jurista e professor da Faculdade de Direito (FD), estabelece um paralelo entre a ditadura militar e a abolição da escravidão. “O que fizemos com as dores sofridas durante quatro séculos de escravidão? Viramos a página. Com o regime militar, quisemos fazer a mesma coisa e estabelecemos algo inédito na América Latina: um regime de total impunidade que permanece até hoje”.

“No mínimo, vamos reinstalar o debate que ficou proibido por tanto tempo e dar voz a pessoas que viveram a ditadura e permaneceram sob censura por anos”, afirma Vera Paiva. Ela ressalta que a construção da democracia se (re)faz a cada geração e elogia os “escrachos populares” ocorridos este ano por movimentos populares. Os escrachos espalharam cartazes com nomes de torturadores e desaparecidos durante a ditadura militar. “Se os jovens querem falar sobre o assunto, significa que ele não está acabado. É preciso dizer os nomes dos torturadores para a sociedade conhecê-los e cobrar uma resposta”, conclui.

Para Paulo Abrão, os cartazes e panfletos com nomes de torturadores e desaparecidos durante a ditadura militar, espalhados durante os escrachos , mostram uma dimensão de formação política relevante: “São sinais da vitalização democrática. São sinais de que a dor foi desindividualizada, de que o direito à memória e a verdade foi apropriado pela juventude como um direito deles”.

A reportagem do Jornal do Campus entrou em contato com a assessoria de imprensa do Exército em São Paulo, mas não obteve resposta até o fechamento dessa edição.