Perfil: Ana Rosa Kucinski

“Março de 1961. No velho casarão da Alameda Glete, no seu jardim com um banco só, reinava um clima de euforia, suspense e expectativa. Era o dia do famoso Colóquio Geral’, para arguir veteranos e principalmente os calouros. Chegada a hora, dirigimo-nos todos ao anfiteatro e nós calouros estávamos mais nervosos do que no dia do vestibular. Um a um, fomos sendo chamados para frente e voltávamos ao lugar humilhados e convictos de nossa burrice e ignorância. Era a vez de uma certa caloura alta e magra, cabelos curtos acastanhados chamada Ana Rosa Kucinski. Levantou-se, mas, no meio do caminho eis que ela tem um desmaio e cai no chão. Correm os veteranos para socorrê-la e carregam-na para fora”.

Foi tudo simulado. Entre papéis que seu irmão, Bernardo Kucinski, entregou à repórter constava este divertido relato do primeiro dia na universidade escrito por um amigo de Ana Rosa. “Ela era uma pessoa doce, uma meninona, se eu a visse brincando de boneca eu não me surpreenderia”, comenta o professor aposentado do Instituto de Química (IQ) Etelvino Bechara, outro colega de tempos passados.

Ana Rosa acompanhada de Massaro (último à direita)
Ana Rosa acompanhada de Massaro (último à direita)

Terrivelmente humana, culta, inteligente, atrevida e inquieta. Não há quem fale de Ana Rosa Kucinski sem citar seu grande interesse por arte, cultura e política – esta última lhe custaria a vida. “Ela, estando em uma faculdade de ciências exatas, era a pessoa que mais conhecia literatura, música clássica, balé e cinema”, conta o professor Sérgio Massaro, seu companheiro na graduação e, depois, à frente de salas de aula no IQ. Segundo Massaro, Ana Rosa teve um papel fundamental para lhe “abrir a cabeça”. “Ela era minha mãe do materialismo-marxismo-leninismo-dialético”, brinca, relembrando o dia em que ela, ao som do hino comunista “A Internacional”, o batizou na ideologia, durante uma assembléia de alunos no prédio da antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), na rua Maria Antônia.

Nascida em uma tradicional família judia, Ana Rosa ingressou, no início dos anos 1960, no curso de química da FFCL. Ana era uma pessoa avançada para sua época: “Ela era incomum e até um pouco atrevida, mas com substância”, explica Massaro. Substância esta presente, por exemplo, em sua própria postura. Sérgio conta que a jovem até usava salto alto de vez em quando, mas ele se recorda de Ana comentando que sapatos assim são para “dar à mulher sensação de fragilidade e, então, precisar do homem para apoiá-la”.

A franqueza de Ana Rosa pode ter afastado algumas pessoas. Mas os tempos eram difíceis – época da ditadura militar no Brasil – e algumas coisas precisavam ser ditas: “Por algumas pessoas do departamento ela era vista como alguém que incomodava, porque era muito franca, criticava não só politicamente mas também academicamente. Ela tinha diversas críticas ao curso de química.”, conta Bechara.

Mas Massaro acredita que por trás daquela aparente agressividade, o que existia acima de tudo era uma emoção filtrada pela razão: “Ela não priorizava nem uma, nem outra, mas era um misto dos dois”. Pensando sobre a sensibilidade da amiga, ele relembra duas histórias. Na primeira, surge a imagem de Ana aos prantos porque, logo nos primeiros anos de graduação, ele e alguns colegas roubaram sua marmita: “Era sagrado o lanchinho para ela. Não pela comida em si, porque ela não dava bola para isso, mas por causa da lembrança de sua mãe, quem fizera a marmita e que já estava bem doente”, explica. A segunda lembrança ressurge mais forte quando o professor escuta Gente humilde, de Chico Buarque, e remonta a, segundo ele, “um desses dias de fossa, não sei se dela ou minha”, em que os dois amigos e confidentes resolveram vagar pela cidade de trem ao anoitecer. “Ela via as luzinhas e falava assim: ‘Olha, Serginho, atrás de cada luzinha dessas tem uma casa, cada luzinha dessas têm pessoas, uma família”, conta Massaro emocionado.

Conforme o cerco da repressão se fechava, na virada dos anos 1960 para 1970, a professora foi se tornando mais discreta e cautelosa. No IQ, e para o seu pai, ela ainda era apenas Ana Rosa Kucinski. Eles desconheciam o “Silva” de seu sobrenome, fruto de uma união civil com o aluno de física da USP e militante da Aliança Libertadora Nacional (ALN), Wilson Silva. Tampouco sabiam os colegas Massaro e Bechara de sua possível filiação à organização.

Massaro conta que foi percebendo que a amiga estava com medo: “Ela me pediu para roubar um par de placas de carros. Então, fui sozinho de noite no campus [Butantã] e roubei”, conta o professor.

O professor, com quem Ana Rosa dividia aulas no laboratório, conta também como a colega havia se tornado mais ausente no dia-a-dia acadêmico. Em um dado momento, ela pedia a uma colega que pegasse alguns relatórios feitos pelos alunos e os entregasse a ela. Sem aparecer no IQ, Ana Rosa dava o visto, corrigia-os e devolvia para a amiga reencaminhar a Massaro, que os entregaria para os alunos: “Era como se estivesse tudo bem, mas Ana não estava de corpo presente”, explica.

A última vez em que os colegas se encontraram foi na Praça Benedito Calixto, em Pinheiros, aproximadamente quinze dias antes de ela sumir. O professor conta que ela ligou para o Instituto pedindo para que ele e outros amigos a encontrassem lá. Ele explica que, na época, tinha o contato de alguns freis dominicanos e acreditava que eles poderiam ajudar a tirar Ana do Brasil. Mas ela não quis. Massaro recorda-se precisamente da resposta que ouviu: “Eu sou um soldado, obedeço a ordens do meu comandante”.

Ana Rosa Kucinski e seu marido desapareceram no dia 22 de abril de 1974. No ano seguinte, Ana foi demitida do IQ. Desde então, sua família, a exemplo de muitas outras que tiveram membros vitimados pelo regime militar, procura informações sobre seu paradeiro. A busca inspirou o irmão, Bernardo Kucinski, a escrever o romance ficcional K, lançado em 2011. No início deste ano, o ex-agente da ditadura, Cláudio Guerra, revelou em sua biografia Memórias de uma guerra suja ter incinerado os corpos do casal em uma usina de cana-de-açúcar localizada no Rio de Janeiro.

Errata
Foi publicado anteriormente que o ex-colega de Ana Rosa Kucinski chamava-se Evanildo Bechara. O nome correto é Etelvino José Henriques Bechara, professor aposentado do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) e professor titular na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).