Sessões no Supremo retomam caso do mensalão

Professor da FDUSP argumeta que julgamento comprova a maturidade da democracia brasileira e a independência dos Três Poderes

Um dos maiores e mais emblemáticos casos de corrupção da história recente do Brasil, o mensalão vem sendo julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde o início de agosto. A denúncia do esquema de desvio de dinheiro público para compra de apoio parlamentar no Congresso Nacional, partiu do então deputado federal e atual presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Roberto Jefferson, adquiriu imensa repercussão pública e tornou-se um estigma do governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Nos últimos 40 dias, mídia e sociedade têm se mobilizado diante da expectativa de condenação dos réus, contrariando o sentimento geral que se tinha em 2005 de que tudo “acabaria em pizza”. Interessados em entender melhor o caso e o processo, alguns alunos da Faculdade de Direito do Largo do São Francisco (FDUSP) formaram um grupo de estudos. Com o blog “Tudo sobre o mensalão”, propõem uma cobertura distinta da feita pela grande imprensa, focando numa análise mais técnica, embasada no Direito. “O próprio blog surgiu da ideia de mostrar todos os lados dessa discussão, focar em pontos que não vinham sendo abordados até então”, afirmaram os integrantes do grupo Pedro Martinez e Pedro Gabriel Lopes.

(infográfico: Vinícius Pereira)
(infográfico: Vinícius Pereira)

Para José Levi Mello do Amaral Júnior, professor de Direito Constitucional no Largo de São Francisco, o julgamento do mensalão já demonstra que as instituições brasileiras democráticas funcionam, e bem, pois o processo é fruto de investigação feita, primeiramente, pelo próprio Congresso Nacional, através de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). Mello, que tem como uma de suas linhas de pesquisa o controle de constitucionalidade e jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, espera que “ao fim do julgamento do mensalão, o resultado seja uma sociedade democrática bem mais madura”. Mello acredita ainda que a cobertura feita pela mídia tem sido profissional e correta. Para o professor, esse diálogo faz parte da democracia e os 11 ministros têm agido com serenidade e imparcialidade diante das pressões da opinião pública. “Ministros do Supremo são muito experimentados. Acreditar em pressão sobre um deles é como acreditar em Papai Noel”, diz. Já Martinez e Lopes atentam para a atuação da imprensa em casos de grande repercussão. Segundo eles, o julgamento tende a tomar dimensões de um “show penal”, com a mídia assumindo uma versão do caso como verdadeira, fazendo um pré-julgamento e dispensando assim, supostamente, a necessidade do trabalho dos ministros.

Conceitos jurídicos

Tanto os alunos quanto o professor salientaram a necessidade de esclarecer alguns termos e conceitos relativos ao meio jurídico que vêm sendo usados de modo equivocado na cobertura midiática e pela população em geral. Desde o início do julgamento, falou-se que este seria o primeiro caso de corrupção a ser julgado pelo STF, fato que surpreendeu a muitos. No entanto, o Supremo já julgou casos semelhantes, por exemplo o que envolveu o ex-presidente Fernando Collor de Mello. A novidade estaria em uma mudança na legislação: até 2001, quando foi feita uma modificação na Constituição, os parlamentares podiam ser julgados somente após uma autorização prévia do Senado ou da Câmara dos Deputados, o que freava, na maioria das vezes, as tentativas de julgamento. Para o professor, essa mudança indica amadurecimento da democracia brasileira, evidencia a estabilidade dos poderes e permite uma maior interdependência entre eles.

Parlamentares, assim como ocupantes de altos cargos na República, têm “foro privilegiado”, ou seja, respondem pela ações judiciais em cortes específicas, no caso, o STF. O professor destaca que um termo melhor seria “prerrogativa de foro”, por não constituir exatamente um privilégio. Um exemplo disso é a impossibilidade de se recorrer da decisão do julgamento em curso, uma vez que o STF é um tribunal de última instância. Devido a essa particularidade , na qual se encaixam alguns réus, a ação como um todo foi levada ao Supremo. O grupo de estudos da Faculdade de Direito também chamou atenção para o processo de seleção dos 11 ministros que, por serem nomeados pelo chefe do Executivo, poderiam ter sua credibilidade contestada. “Temos que desmistificar algumas coisas: não é o presidente que impõe de maneira autoritária o ministro, há uma indicação e o candidato é sabatinado pelo Senado para comprovar que possui o conhecimento jurídico necessário para assumir o cargo” explica Martinez.

Controvérsias

Ao confirmar que o julgamento do mensalão seria “fatiado”, para que a análise das denúncias contra os réus ocorra de acordo com os crimes listados na acusação, o presidente do STF, Carlos Ayres Britto, disse não acreditar que a medida atrapalharia o processo ou abriria brechas jurídicas. Até agora, dois dos sete itens da denúncia foram julgados: o primeiro abordando o desvio de dinheiro público e o segundo referindo-se aos quatro réus ligados ao Banco Rural acusados de gestão fraudulenta. Na última segunda-feira (10), o ministro relator, Joaquim Barbosa, votou pela condenação de nove réus por lavagem de dinheiro. A decisão de “fatiar” os votos, no entanto, dividiu as opiniões entre juristas e advogados. Mello acredita que a divisão e o exame passo a passo das condutas foram importantes para a logicidade e para a definição do processo. “Não precisa se examinar tudo de uma vez só, até porque as relações humanas vão se desdobrando”, afirma.

Por outro lado, Martinez opina que o “julgamento ‘fatiado’ segue a lógica da acusação”. Segundo ele, a separação de núcleos prejudica o andamento do processo, que teria a mesma duração se os votos fossem feitos de maneira integral. Na visão do Supremo, a divisão do processo foi importante para que Cezar Peluso participasse ao menos de uma parte do julgamento. O agora ex-ministro foi aposentado de forma compulsória no dia 3 de setembro, quando completou 70 anos. Na última segunda-feira (10), a presidenta Dilma Rousseff indicou o ministro do STJ Teori Zavascki para assumir o cargo vago no STF. Já se cogita que, caso a indicação de Zavascki seja aprovada pelo Senado a tempo, ele poderá, inclusive, participar do julgamento do mensalão. Martinez critica o fato de a divisão ter feito com que Peluso votasse em apenas um dos itens da denúncia, já que ele se utilizava de “aspectos muito técnicos e que poderia ter mudado o voto em relação ao que foi dito”. Entretanto, o universitário ressalta que os outros 10 ministros possuem competência suficiente para continuar o julgamento sem a participação do ministro aposentado.

Ainda em relação à saída de Peluso, Mello considera absolutamente normal que um ministro deixe o julgamento em seu decorrer. Sobre a possibilidade de mudança de voto, ele considera pouco provável que algum dos ministros volte atrás em suas decisões. Com o STF agora composto por um número par de ministros, a possibilidade de ocorrerem empates nas votações tornou-se plausível. A discussão em torno da maneira pela qual uma igualdade entre votos condenatórios e absolutórios seria resolvida também é motivo de controvérsia. Segundo o professor, o regimento do Supremo prevê que o presidente da corte dê o voto de qualidade. Além do voto de minerva, os dois integrantes do grupo de estudos da FDUSP também citam a tese do in dubio pro reo, que determina que, em caso de empate, a decisão deveria ser favorável ao réu. O STF, por sua vez, ainda não definiu qual critério utilizará caso o “placar” marque 5 a 5.

Além disso, um dos aspectos mais controversos do julgamento do mensalão refere-se à maneira como está sendo feita a análise dos autos. Os membros do “Tudo sobre o mensalão” têm a opinião de que alguns ministros têm aceitado provas mais tênues e flexibilizado as garantias jurídicas para condenar os réus. “É complicado, porque se parte de um princípio que o mensalão existiu e diz que não se tem prova porque eles fizeram um trabalho muito bem feito. Alguns ministros dizem que dá para flexibilizar isso e outros tendem a adotar uma linha mais garantista do processo penal”, afirma Martinez. Outra dúvida que ainda persiste é referente ao que será feito quando os ministros terminarem de votar todas as “fatias” do processo. Não se sabe como será conduzida e nem quanto tempo durará a determinação da pena de cada um dos condenados.

Reverberações

Apesar de todas as controvérsias que envolvem o mensalão, tanto Mello quanto os universitários concordam que o caso deixará um importante legado tanto para a democracia e quanto para o Direito.

Lopes e Martinez mostram preocupação com a flexibilização das garantias constitucionais conquistadas em 1988. O julgamento da ação penal 470 “abre um grande precedente de que, na ausência de provas, ainda assim é possível condenar”, afirma Lopes. Tal situação se configuraria caso os ministros condenem os réus por corrupção, ainda que não haja um ato de ofício, ou seja, um documento que comprove a transação irregular. Martinez cita ainda que as decisões do Supremo darão “um direcionamento a respeito do julgamento de alguns crimes como a lavagem de dinheiro.”

Para Mello, esse julgamento é emblemático por ser um ponto de inflexão de uma certa cultura de impunidade no país. Ele avalia que até o momento há um saldo positivo em favor do Supremo, “mostrando que é um Poder da República altivo, independente e capaz de imprimir a imparcialidade adequada ao julgamento de casos como este”, citando ainda que, mesmo nos tempos do regime militar, o STF soube impor sua independência. E é para a democracia brasileira que o professor acredita que o julgamento trará as principais consequências. Ele acredita que faz parte do aprendizado democrático conviver com julgamentos como esse. A compreensão do seu significado será sedimentado, aos poucos, na cultura popular e na prática da imprensa. “O processo está discutindo as nossas próprias relações democráticas no intuito de melhorá-las. A democracia é um processo que segue seu curso no sentido de evoluir e amadurecer”, explica.


A corrupção não parou (nem começou) por aí

O “mensalão mineiro”, também conhecido como “mensalão tucano”, foi um esquema de corrupção relacionado ao desvio de verbas públicas para a campanha de reeleição do então governador de Minas Gerais e atual deputado federal, Eduardo Azeredo (PSDB) em 1998. Em 2007, o Procurador-Geral da República, Antonio Fernando de Souza, foi ao Supremo pedir para que o deputado fosse julgado. O pedido foi aceito e agora ele é réu pelos crimes de peculato e lavagem de dinheiro.

Na acusação, o empresário Marcos Valério é apontado como principal articulador do esquema de desvio de dinheiro. Segundo o procurador, tal episódio teria servido como “laboratório” para as operações feitas por Valério no mensalão petista de 2005.

Além de Valério e Azeredo outras 15 pessoas foram apontadas como envolvidas no esquema. De acordo com a polícia, seis empreiteiras teriam doado irregularmente cerca de R$ 8,2 milhões para a campanha do governador em troca de benefícios.

Também seguindo a linha de desvio de dinheiro público para o pagamento de propina a deputados da base aliada, o chamado “mensalão do DEM” veio à tona no final de 2009 com a divulgação de vídeos do então governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda (sem partido, ex-DEM), recebendo maços de dinheiro.

Descoberto pela Operação Caixa de Pandora, da Polícia Federal, e delatado por Durval Barbosa, ex-secretário de Relações Institucionais do DF, o escândalo envolveu empresas de tecnologia e provocou a cassação do mandato de Arruda, que acabou ficando preso por dois meses.

No último dia 29 de junho, a Procuradoria-Geral da República apresentou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a acusação formal dos 37 suspeitos de envolvimento no “mensalão do DEM”. Segundo o procurador Roberto Gurgel, o esquema teria desviado pelo menos R$ 110 milhões. No início de agosto, o STJ abriu processo penal contra os réus.