Ulysses: os 90 anos de um clássico moderno

Aniversário do romance de James Joyce é celebrado com debates e palestras pela Cátedra de Estudos Irlandeses William Butler Yeats
O irlandês James Joyce, autor de Ulysses (arte: Carolina Moniz e Vinícius Pereira)
O irlandês James Joyce, autor de Ulysses (arte: Carolina Moniz e Vinícius Pereira)

O ano de 1922 é lembrado como marco do movimento modernista nacional, graças à realização da Semana de Arte Moderna. Mas foi um ano emblemático para o Modernismo não só no Brasil. Em 2012, duas obras que seriam marcos do movimento completam 90 anos: A Terra Desolada, poema do britânico Thomas Stearns Eliot (1888-1965), e Ulysses, romance do irlandês James Joyce (1882-1941).

A Cátedra William Butler Yeats de Estudos Irlandeses da FFLCH promoveu, em agosto, dois eventos para discutir o Ulysses. O livro narra a trajetória de um dia – 16 de junho de 1904, data em que o autor saiu com sua futura esposa pela primeira vez – na vida de Leopold Bloom, um pacato morador de Dublin, capital da Irlanda.

Aparentemente banal, o enredo utiliza-se da estrutura do épico de Homero, a Odisseia, transportando a trajetória do herói Ulisses da Grécia Antiga para a Dublin moderna na figura de Leopold Bloom.

Segundo a professora do Departamento de Letras Modernas da FFLCH, Munira Hamud Mutran, é preciso ter em mente que Eliot e Joyce retrataram realidades diferentes em suas obras. Ainda que a experiência da Primeira Guerra (1914-1918) tenha afetado profundamente toda a Europa, a Inglaterra foi um dos países que mais sentiu seus impactos. Isso está presente na poesia de Eliot, não só na Terra Desolada, mas também em poemas como Os Homens Ocos, de 1925: Londres é retratada como uma cidade irreal, a qual o poeta não imaginava que a morte destruiria tanto. Já a Irlanda de Joyce vivia tempos turbulentos, mas com suas especificidades. O país travou uma guerra de independência contra a Inglaterra por três anos (1919-1921) e passou por uma guerra civil (1922-1923) após o acordo com a metrópole que garantiu sua independência. A questão nacional aparece no romance, com o protagonista, em diversas ocasiões, rejeitando o nacionalismo exacerbado daqueles tempos.

Apesar dessas diferenças, a professora aponta também questões em comum: as duas obras são representativas da dificuldade que a obra modernista apresenta, graças a seus experimentalismos com a linguagem e seu trato com o tempo, com muitos eventos acontecendo simultaneamente. Isso fez com que muitos escritores escrevessem sobre sua própria produção, o que acontece, por exemplo, na Terra Desolada, que conta com notas do autor desde sua primeira publicação em livro.

A questão modernista

Segundo a professora, Joyce inovou em apresentar uma cidade, Dublin, e não “a Irlanda dos campos verdes” como o terreno onde a ação se desenrola. Isso já acontecia em obras anteriores do autor, como no livro de contos Dublinenses, de 1914. Vendo o caos do mundo moderno, usou o clássico de Homero e sua ordem como moldura para organizar o material de seu romance. Mas, ao invés de retratar os feitos heroicos de Ulisses, colocou um homem comum caminhando “pelas ruas tortuosas de Dublin”. A professora ainda comenta que, se obras como Ulysses e A Terra Desolada podem ser vistas como ápices do Modernismo, diferentes países e diferentes cidades tiveram suas expressões particulares do movimento, sendo mais apropriado falar em “modernismos”.

Munira falou que a obra teve recepções diversas, havendo desde quem a considerasse um grande romance a quem não a compreendesse. O livro também contou com detratores célebres. Segundo consta na introdução da edição da Companhia das Letras, feita pelo acadêmico Declan Kiberd, entre eles estavam os escritores britânicos D.H. Lawrence (1885-1930) e Virginia Woolf (1882-1941), que usaria a técnica do fluxo de consciência em suas obras, particularmente em Mrs. Dalloway, de 1925. A técnica consiste no registro de percepções, sentimentos e memórias que ocorrem às personagens e foi bastante utilizada por Joyce: o capítulo final do livro é um grande monólogo em forma de fluxo de consciência de Molly Bloom, esposa do protagonista.

Mas, além dessas resistências, a obra se deparou com problemas de outra ordem. Antes de editada em livro, seus episódios eram publicados serialmente na revista americana The Little Review, até que, em 1920, a publicação do episódio “Nausicaä”, em que Leopold Bloom aparece se masturbando, levou a revista a ser processada por obscenidade. Em 1921 ela foi condenada e o livro permaneceu banido nos Estados Unidos até 1933. O livro foi publicado na íntegra na França, em 1922. Para a professora, nem cabe mais discutir o assunto, de tão pouco chocante que o episódio é para os padrões atuais.

Com tantos problemas nos seus primórdios, hoje Ulysses tem o status de um clássico. Para a professora, “ao reescrever os clássicos, Joyce se tornou um clássico” e isso aconteceu porque seu livro fala de um homem comum, “o herói moderno”. Enquanto o Ulisses de Homero lutava com gigantes, Leopold Bloom teve que lidar com uma série de complicações por sua vez: um filho morto, um pai que se matou, a esposa, Molly Bloom, que o traiu. E tudo isso ele faz sem, no entender da professora, cair nas tentações do homem moderno, que vão do suicídio e o alcoolismo à vingança. Ele enfrenta o maior perigo de todos, que é ver e viver a vida como absurdo, e ainda por cima o faz com certa dose de otimismo.