54 º Jabuti premia duas professoras da ECA

Professoras são as primeiras na categoria “Comunicação” com obras sobre a relação do livro com a sociedade brasileira

O Prêmio Jabuti homenageia as melhores obras de 29 áreas diferentes todos os anos. Nesta 54ª edição do Prêmio Jabuti, as duas primeiras colocações da categoria Comunicação foram para as profesoras da ECA-USP Marisa Midori e Sandra Reimão. As duas obras tratam da relação do livro com a sociedade brasileira em diferentes aspectos e épocas. O império dos livros: instituições e práticas de leitura na São Paulo Oitocentista, de Marisa, foi o primeiro colocado. A obra de Sandra, Repressão e Resistência: Censura a livros na Ditadura Militar,
ficou em segundo lugar.

Livros e história
Marisa Midori, professora do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP, afirma que seu interesse inicial era pesquisar a história das livrarias em São Paulo, da primeira do século XIX até a mais importante, a do francês Anatole Louis Garraux (1833-1904). Mas o processo de pesquisa a levou a expandir seu objeto de estudo.”Eu fui recuando, recuando, até uma história total dos livros, dos hábitos de leitura, das livrarias, das bibliotecas, dos bibliotecários. Uma história do livro em São Paulo”, conta.

Marisa Midori ganhou Jabuti de Comunicação. (Foto: divulgação)

Sua obra é dividida em quatro capítulos. No primeiro, a professora observa que as principais bibliotecas da São Paulo dos fins do período colonial eram religiosas. Sob o signo do Iluminismo, vai começar um processo de laicização, que envolverá também a formação, no começo do século XIX, de instituições e de um aparato cultural do Brasil Independente.

A relação desse aparato – os livros, as bibliotecas, o ensino, a instrução – com os intelectuais do período pós-colonial é o objeto de estudo do segundo capítulo. Já o terceiro procura tratar da infraestrutura urbana de São Paulo e as relações do desenvolvimento demográfico, espacial e urbanístico com o espaço dos livros. “O aumento demográfico, a urbanização, a modernização no final do século XIX trazem aparelhos culturais? A população, na medida em que adquire uma cultura mais urbana do que rural, passa a ler mais, as livrarias aumentam?”, são algumas das questões abordadas. O quarto capítulo irá tratar especificamente da livraria de Garraux, instalada em São Paulo em 1859, e de como o desenvolvimento econômico da cidade influiu na vida cultural.

Esses vários aspectos tiveram como eixo a cultura jurídica e, nesse sentido, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco mereceu bastante atenção na obra. “Dentro desse contexto de formação do Brasil e de suas instituições, são os alunos do Direito que serão os políticos, serão os homens de estado”. Outro aspecto estudado diz respeito ao espessamento das camadas médias urbanas, graças ao processo de modernização e urbanização, que “concorre para um aumento das livrarias, das bibliotecas, desses consumidores de bens culturais”. Essa segunda dinâmica levou a professora a estender um pouco espectro do seu trabalho para além do século XIX, chegando à primeira década do XX. Já na República, assiste-se a um vertiginoso crescimento de bibliotecas e o surgimento de novas instituições culturais, tornando a década, para a professora, “um parâmetro em relação àquele processo mais lento que vinha se desenrolando ao Longo do século XIX”.

A professora menciona ainda uma ideia do historiador Edgar Carone (1923-2003), que foi seu professor, para explicar os limites do desenvolvimento das camadas de leitores no Brasil no século XIX. “Ele diz que a história editorial do Brasil é a história da burguesia brasileira. E por isso essa história deve ser analisada dentro dos progressos que a burguesia promove e também dentro dos recuos, dos seus retrocessos. Isso vale para o século XIX e o começo do XX”, afirma. Assim sendo, não é de se espantar que obras de Marx e Engels, entre outros autores de esquerda, não tivessem lugar durante o Brasil do século XIX. É com a industrialização e a formação de uma massa de operários em São Paulo, que essa e outras linhas de pensamento que já eram fortes na Europa vão encontrar aqui solo fértil.

Censura à ficção
Se a teia moralista que indicava livros para serem censurados durante a ditadura ainda existe, Sandra Reimão não pode constatar com certeza. O oposto, porém, ela constatou. Durante a pesquisa que gerou seu livro, a autora conheceu pessoas que resistiram à censura a livros durante o regime militar. “Elas são a teia da resistência. Ao mesmo tempo em que havia a teia da denúncia, existia também a teia da resistência”, conta a pesquisadora.

Sandra Reimão, segunda colocada no Jabuti. (Foto: Victor Augusto de Souza)

A obra trata especificamente da censura a livros de ficção no Brasil e analisa suas causas e consequências. Diferente das proibição de algumas publicações jornalísticas, que era imposta pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), os livros eram de responsabilidade do DCDP (Departamento de Censura e Diversões Públicas), que também era responsável por verificar cinema, televisão, radio, teatro, publicidade e outdoors.

Um dos importantes frutos da pesquisa, além da obra em si, foi a lista dos livros censurados durante o período. Sandra. utilizou material bibliográfico e documentação da censura para realizar o levantamento.

O leque de análises a partir do tema “censura a ficção” é algo bastante interessante. Isso porque é muito diferente da proibição de notícias ou de caça a veículos midiáticos cujas correntes ideológicas eram discordantes da defendida pela ditadura militar. Esse tipo de censura possui motivos muito mais claros de exstência. A censura a livros de ficção é descrita por Sandra como tendo duas razões principais. O primeiro deles seria o surgimento de uma literatura muito violenta, como, por exemplo, obras de Rubem Fonseca. “Era uma literatura que percebia a violência que estava se instituindo nessa sociedade e isso não foi muito bem aceitada pelo Estado autoritário”, comenta a pesquisadora. O outro aspecto seria puramente a questão moral: livros que fugiam do padrão de “bons costumes” da época eram considerados nocivos. “Para um Estado autoritário a moral familiar é a base do estado”, analisa Sandra.

Outro ponto importante de que trata a obra é a criação de uma cultura de vigilância por parte pró-ditadura da população. A professora explica que havia a sensação por parcelas da população de que a segurança nacional estava ameaçada; assim, foi sendo tecida a ideia de que a segurança da nação era uma questão de cidadania. Sem dúvida, uma das maiores contribuições da obra é mostrar a teia de “censores civis” espalhada pelo país. Vendida com sistema imposto sem qualquer apoio, a ditadura militar teve muitos apoiadores e algumas
destas mesmas pessoas se sentiam no direto de pedir a censura de livros que não lhes agradavam por motivos morais ou políticos. Felizmente, o contraponto existia e, aos poucos, colaborou para a mudança à sua volta. Cada escritor, editor e livreiro descontente ajudou a escrever nossa história.