Nelson Fordelone (6º semestre de Letras)

Jornal do Campus: Como você chegou até o estudante que estava sendo agredido? Você estava na festa e foi chamado por alguém?
Nelson: Eu estava do lado de fora do espaço verde, conversando com alguns amigos, quando vi dois homens agredindo um rapaz. Corri para separá-los e eles correram escada abaixo, onde segui e vi uma briga prestes a se iniciar. Eu e mais algumas pessoas evitamos que acontecesse, mas do outro lado da rua estavam três viaturas da guarda universitária, onde cinco ou seis guardas imobilizavam e cercavam um rapaz, que estava com as mãos presas para trás, o peito encostado em um carro e a cabeça sangrando. Fui lá ver o que estava acontecendo.

JC: Quando você foi ver o que estava acontecendo, que tipo de justificativa os guardas apresentaram para aquela situação? Todos eles estavam com identificação?
N: Nenhum deles estava identificado. O que se afirmava supervisor disse o primeiro nome, o qual não me lembro, mas os que efetivamente seguravam o aluno em condições desumanas, se recusavam e afirmavam não ter essa obrigação. O mesmo supervisor também desviava o assunto, quando questionávamos o nome dos demais. Quanto à justificativa, este mesmo homem afirmava, a princípio, que um Guarda Universitário tinha sido atropelado e eles aguardavam a PM chegar. Questionamos onde estava esse guarda, para averiguarmos, mas também não diziam, até que o discurso mudou e afirmaram ter sido derrubado um cavalete. Procurei marcas no carro, mas não havia nenhuma, então acho estranho. E ainda mais estranho é o fato de que eles roubaram a carteira e as chaves do condutor, como se tivessem autoridade para tanto.

 JC: Quando a PM chegou o que aconteceu exatamente? Que tipo de explicação os guardas deram à PM para o que estava acontecendo? Eles apoiaram a G.U e ficou “por isso mesmo” ou o estudante foi com eles até a delegacia para a fazer BO?
N: Quando a PM chegou, ficaram de longe observando. Fui junto com uma integrante do coletivo feminista da Letras, um membro do CEUPES e a aluna vítima do Guarda Universitário, registrar uma queixa. Todos sabemos que a PM tem outros objetivos, que não proteger o cidadão, mas era preciso tentar, justamente para expor a contradição e, infelizmente, estávamos certos. Eles se recusaram a registrar nossa queixa, afirmando que deveríamos contatar a reitoria. A Guarda, ao menos na nossa frente, não falou com a PM. Em verdade, todos pareciam dispostos a sair dali o mais rápido possível, diante da quantidade de estudantes que desceu da festa em solidariedade aos colegas.

JC: O que aconteceu com a menina que tinha sido agredida pelo Guarda? Ela desistiu de fazer a queixa? Você a conhece?
N: Eu não a conheço. Ela não desistiu de fazer a queixa, contudo, a PM se recusava a fazer naquele momento e assim, ela não poderia naquele momento denunciar o caso de machismo, no qual foi empurrada e referida como “nóia” e “vadia”, tratamento diverso do dado a rapazes, especialmente os maiores. Isso porque a delegacia da mulher não funciona aos feriados e nem ao final de semana. Não sei se ela, na segunda, tomou alguma providência.

JC: Com base no que você presenciou na última quinta, você acredita que a Guarda Universitária e a PM se mantêm, perante os alunos, como mais um símbolo de segurança ou como mais um motivo de medo, dentro da campus?
N: Veja bem, ainda que tivéssemos a PM e a Guarda Universitária constituída em seu corpo, com livres docentes PHD em Direitos Humanos, especialistas em Krav Magá, eles ainda teriam um viés opressor, tanto na USP quanto fora dela. As sociedades modernas são caracterizadas pelo que pode ser denominado “fetichismo da polícia”, a pressuposição ideológica de que a polícia é um pré-requisito essencial para a ordem social e que sem a força policial, o caos vai instalar-se. Contrariando esse devaneio, há muitas sociedades sem qualquer espécie de força policial formal e, certamente, sem o modelo atual de polícia. Sem dúvida, hoje em dia é questionável a contribuição da polícia para o controle e a manutenção da ordem, como indicam estudos da eficácia da polícia.

Vale dizer, aqui, que quando eu falo em polícia, me refiro à instituição social. Não nego o policiamento como necessário, sendo ele entendido como um conjunto de processos com função social específica. Aliás, não afirmo nem que seja necessário, mas afirmo que há em todas as sociedades, incluindo aquelas que não possuem polícia.

Existem diversos mitos a respeito da polícia. Um deles é o de que a “tolerância zero” funciona, muito comum entre os conservadores. Outro é o de que a polícia só serve para reprimir e oprimir, muito difundido entre a esquerda. Isso, sem falar naquela lenda de “polícia comunitára”, como se ela prestasse um serviço social a uma comunidade harmoniosa de clientes satisfeitos, atualmente muito especulado como uma alternativa viável às duas primeiras.

Enquanto isso, o mito mais difundido é o da bala mágica, supondo que pesquisando e analisando os problemas de policiamento, é possível desenvolver táticas que forneçam o grau certo de força necessária para, efetiva e legitimamente, controlar o crime e manter a ordem. Esta versão sofisticada do primeiro mito é tão viável quanto a da polícia comunitária, esta, uma versão sofisticada do segundo mito.

Ocorre que o próprio policiamento, seja ele institucional ou não, não é capaz de conseguir uma sociedade ordenada, por mais desejável que isso seja, pelas próprias contradições da estrutura social.

É inaceitável que a mesma sociedade, responsável pela criação de condições de marginalização de seus componentes, não de maneira caótica, mas sistemática, extermine-os, como se não tivesse sobre eles qualquer responsabilidade. Aceitar essa anomalia corresponde a um sadismo que não pode ser normalizado, como o de quem cria porcos para o abate pelo puro prazer de vê-los morrer. Como quem dá a uma criança um brinquedo sabidamente defeituoso e refestela-se vendo a decepção.

Sei que neste momento posso parecer ofensivo com minha colocação, considerando que são homens sérios, que desejam um mundo melhor. Observem, no entanto, que quando a polícia mata por engano um pai de família, seja por acidente, seja por maldade, seja confessando o erro, seja afirmando que ele foi morto em confronto (mesmo tendo levado tiro na nuca), você está desestruturando uma família que já estava, de antemão, em condição de fragilidade. Precisando sobreviver, sem a renda do pai, é provável que a criança abandone a escola e trabalhe, ou seja cooptada pela criminalidade por não conseguir trabalho formal (afinal, empregar crianças é crime). Aí, com alta probabilidade de se tornar, a criança também, uma criminosa, o Estado vem atuar e ele é assassinado pela polícia sob os aplausos de quem acha que está sendo combatido um câncer.

Outra situação é a da mulher que, ameaçada, se vê obrigada a levar entorpecentes ilegais na penitenciária para o marido. Durante a revista, descobrem a tentativa de burlar a norma e a prendem como traficante. Ela é condenada e passa anos separada de seu filho, qual o marido que já estava previamente preso. Sem pai nem mãe, que futuro tem essa criança?

Assim, a instituição, contudo, concebida como necessária para usar a força em prol de um bem maior, é antes um mecanismo de manutenção das contradições na sociedade e do esfacelamento do tecido social, em um circulo vicioso.

Só é possível considerá-la um fator de segurança na medida em que eu aceitar as condições de nossa sociedade. Se ela parecer justa, está tudo certo. A mim, não parece.