O professor protestante sepultado no convento franciscano

Conversar com Johann Julius Gottfried Ludwig Frank quase exigiu desta reportagem o uso de técnicas mediúnicas de apuração jornalística. Ele não é um professor fantasma que há anos recebe salários do poder público sem ministrar aulas ou mesmo existir. Nem é também mais uma autoridade inacessível da Reitoria, aversa a conceder entrevistas a veículos da imprensa universitária.
Pelo contrário, Júlio Frank (aportuguesamento carinhoso que seu nome ganhou de alunos e funcionários) é talvez o mais assíduo dos docentes do curso de Direito. Há mais de 170 anos ele está sepultado dentro do próprio edifício da Faculdade do Largo São Francisco, logo atrás das célebres escadarias e vitrais que ornam o chamado prédio das arcadas.
Diz o regimento da universidade que, ao completar 70 anos, professores devem obrigatoriamente se aposentar. Mas o professor acabou permanecendo para a eternidade bem em frente à sala onde lecionou a maior parte de seus cursos.
Funcionário responsável pelos arquivos históricos da faculdade há décadas, Waldir Merisci conhece Júlio como poucos. Os dois evidentemente nunca chegaram a se conhecer pessoalmente, mas livros e séculos de prontuários acabaram os aproximando. Sob seus cuidados estão informações centenárias, que nenhum currículo Lattes jamais possuirá.
Merisci conta que Júlio falava, além de alemão (sua língua materna), também português, grego, latim, francês e italiano. Veio para o Brasil em 1828 fugindo de dívidas. Antes disso, em Gotha, região da Baviera, trabalhava ao lado de seus familiares fabricando e encadernando livros. A intensa convivência com o ambiente acadêmico de sua cidade o fez erudito logo cedo. “Aos 12 anos, já era procurado por sua vizinhança para lecionar aulas particulares de História e Geografia”.
Em um primeiro momento, para sobreviver nestas terras que lhe eram estranhas, o professor foi obrigado a deixar a erudição de lado e aprender como tantos outros imigrantes alemães os dons da fundição de metais. Conseguiu emprego na Fábrica de Ferro Ipanema, então situada em Sorocaba, interior de São Paulo. Não suportou por muito tempo e tentou ser caixeiro em uma pequena quitanda local. Os serviços braçais mais uma vez não lhe agradaram. “Recuperou os livros, alugou um quarto na casa de um boticário e passou a fazer o mesmo que já fazia na infância: ensinar”.
A maior parte de seus alunos era composta por jovens que pretendiam viajar a São Paulo para estudar na então chamada Academia de Direito. Quando ele próprio decidiu partir para a capital, essa experiência já foi suficiente para que o brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, presidente da Província de São Paulo, o incorporasse ao quadro de docentes do Curso Anexo, instituição que preparava candidatos à graduação na faculdade.
Não são muitos os registros documentais que restaram sobre o professor, seja no Brasil ou na Alemanha. No entanto, dos vários boatos e mitos que circulam, um dos mais plausíveis se refira a sua amizade com Líbero Badaró, militante liberal que também lecionou no Curso Anexo. Waldir confirma que Júlio era um liberal, mas ressalva que jamais exerceu militância ao lado de Badaró. “Era discreto, limitava-se à sua erudição e ao plano da ideologia”.
Foi dentro da Bucha, nome popular para a Burschenschaft, sociedade secreta de estudantes semelhante à Maçonaria, que mais se aproximou da militância política. “Ele foi quem fundou a seção paulista da organização, que difundia ideias liberais, republicanas e abolicionistas”. Lá se formaram ideologicamente diversos intelectuais e presidentes da Primeira República. São nomes como o de Prudente de Moraes, Campos Salles, Ruy Barbosa e Barão do Rio Branco.
Foi justamente a influência política desses nomes que garantiu que, mesmo após sua morte, em 1841, Frank permanecesse uma figura presente no cotidiano franciscano. Merisci revela que, como todos os cemitérios de São Paulo eram católicos e Júlio era protestante, não havia lugar algum para sepultar seu corpo. “Foram dois alunos membros da Bucha que nutriam grande carinho por ele que negociaram a construção de um jazigo dentro da própria faculdade”.
A construção é arquitetonicamente simples, mas traz símbolos substantivos do pensamento ilustrado que se disseminou em meio à elite acadêmica do século XIX. Se, por um lado, o obelisco localizado bem ao centro do monumento já era uma forma recorrente em túmulos de grandes autoridades desde o século XVII, o diferencial para a época estava nos quatro balaustres simulando tochas – uma alusão às luzes da racionalidade iluminista, que estão simbolizadas por meio de uma vela até mesmo no brasão da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e Letras (FFLCH). Quatro corujas de ferro representando a erudição e a prática da filosofia também resguardam o entorno do jazigo.
Na década de 1930, os alunos colocaram como única condição para que o antigo mosteiro franciscano que abrigava a faculdade pudesse ser demolido o refúgio perpétuo do professor permanecesse intacto.

Foto: Fillipe Mauro
Túmulo do professor tem alusões à racionalidade iluminista (Foto: Fillipe Mauro)