Oi Oi Oi: A avenida que atravessou o Brasil

Intelectuais noveleiros concordam que a trama levou à TV um país que vislumbra ascensão social e não espera mais por um redentor

O último capítulo de Avenida Brasil foi ao ar há mais de uma semana e a repercussão da novela ainda continua. A história de Nina (Débora Falabella) e Carminha (Adriana Esteves) caiu no gosto do Brasil e agora muitos tentam entender esse fenômeno, cujas explicações parecem ir muito além de “quem matou Max?” e dos pontos na audiência.

Se nos anos 1940 as famílias brasileiras se reuniam em torno do rádio para saber o que se passava no país, a partir dos anos 60, quem assumiu tal papel foi a televisão. Mariane Murakami, pesquisadora do Grupo de Estudos de Linguagem: Práticas Midiáticas (MidiaAto), da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), explica que desde o final da década de 1960 as telenovelas nacionais procuram tratar de conflitos, dramas e cenários que estão na pauta do dia do brasileiro. “A realidade começou a entrar na televisão, até o ponto de termos a sensação de que o Jornal Nacional é uma obra de ficção e a novela, a realidade”, completa Eugênio Bucci, jornalista, crítico de TV e professor da ECA.

Nesse sentido, a professora Maria Immacolata Vassallo de Lopes, coordenadora do Centro de Estudos de Telenovela (CETVN) da USP, acredita que, para compreender o sucesso de Avenida Brasil, é fundamental a somatória de uma análise interna a outra externa. Ou seja, não só a produção, direção, a técnica, entrosamento dos atores e talento do autor João Emanuel Carneiro justificariam o atrativo da trama, mas principalmente como ela se relacionou com o momento que vive a sociedade brasileira.

Foi assim com outras novelas lembradas por Maria Immacolata: Roque Santeiro – que retratava um Brasil ainda rural, envolto no realismo fantástico de Dias Gomes – e Vale Tudo, lançada pouco mais de um ano antes da eleição de Collor, que tratava da questão da corrupção: o Brasil honesto que se faz pelo trabalho em atrito com aquele que quer se dar bem a qualquer custo.

O título da obra segue o padrão de localizar a trama no contexto do país – como já foi feito em outras produções, com o uso de cores e músicas que remetem à cultura brasileira. Ele também situa a tensão trabalhada no enredo entre a Zona Sul (região nobre) e subúrbio, já que a avenida Brasil, no Rio de Janeiro, faz a ligação entre essas duas partes da cidade. Mesmo que a avenida em si não apareça, sua função simbólica é apresentada como central.

Para Mariane, é possível dizer que Avenida Brasil também seguiu essa tendência ao representar “o novo momento que o país vive, em que as classes mais populares vislumbram cada vez mais possibilidade de ascensão social”. Ainda segundo a pesquisadora, é possível que boa parte da popularidade da novela esteja exatamente nesse poder da trama de gerar identificação: “mas não no sentido de servir como ‘espelho’ da realidade, mas no de o telespectador projetar nos personagens algo que gostaria de ser.”

A família do jogador de futebol que enriquece representa o que muitos classificam hoje como os “novos ricos”, uma classe C que emergiu. Mas Maria Immacolata reforça que esta é uma classe C que não se envergonha de ser o que é, que assume uma identidade, características próprias – na maneira de falar, por exemplo – e não se coloca como uma classe que quer imitar outra. “Pelo contrário, o ridículo de Avenida Brasil era o núcleo da Zona Sul, o homem com três mulheres, que era colocado ali para fazer rir”, afirma a professora. A cabeleireira do subúrbio, Monalisa (Heloísa Périssé), por exemplo, muda para a Zona Sul, mas não aguenta conviver com hábitos e valores tão diferentes dos seus. “A novela tratou de um Brasil um pouco mais popular”, completa Maria Immacolata.

Assim, junto com a temática da vingança, retratar o subúrbio de forma protagônica aparece para Maria Immacolata como a questão mais importante para se pensar Avenida Brasil. Ela afirma que, no geral, outras obras apresentavam um “núcleo dos pobres” para contrapor com o núcleo principal, em que a trama central quase sempre se dava entre as classes mais altas. Os “suburbanos” muitas vezes eram retratados como ingênuos, estereotipados de tanta alegria e até cômicos.

Bucci aponta ainda outro sintoma da sociedade brasileira que pode ser percebido no desfecho da novela: “O Brasil está em uma democracia que perdeu a inocência, que não alimenta mais a esperança em um salvador da pátria, um redentor como Collor ou mesmo Lula”. Segundo ele, as instituições até podem vir a funcionar bem, mas as pessoas são imperfeitas e o cidadão hoje lida melhor com isso.

O herói aposentado
O professor acredita que retratar personagens estereotipados em uma novela seja praticamente inevitável, porque, segundo ele, as pessoas raciocinam com base em estereótipos. Já Maria Immacolata afirma que Avenida Brasil apresentou, na verdade, uma quebra deles. Ela usa Tufão (Murilo Benício) como exemplo: um jogador de futebol com dinheiro, mas que, contrariando a imagem recorrente de jogadores ricos, preferiu continuar morando no subúrbio e não era galanteador, pelo contrário, foi inclusive traído pela mulher.

Bucci aponta o herói sempre como alguém a ser idealizado pelo público. Tufão foi um personagem que descreveu a saga do herói ao contrário, pois quando a novela começou já havia virado jogador, ficado famoso e rico. “Tufão é um herói precocemente aposentado. É um ídolo, mas não por suas conquistas, e sim porque é um homem bom. Ele vai jogar uma sinuca no bar, tomar uma cerveja e bater uma pelada no fim de semana. O dinheiro dele nunca acaba”. Por não ser mulherengo, pode-se dizer que ele também tem uma reserva de virtude na novela. Esse conflito de vícios e moral do personagem tornou interessante a narrativa, pois marca a tentativa de se abandonar os personagens puros e sensatos, mas, na opinião do professor, sem romper com o modelo do bem e do mal.

Doce vingança
A temática da vingança foi outro ponto que chamou a atenção na trama. Maria Immacolata explica que o tema sempre gera assunto para o melodrama – sendo, inclusive, o tema central de clássicos da literatura, como Hamlet – e no caso de Avenida Brasil a história toda se estruturou em torno de uma vingança. “Acredito que isso agradou até aqueles que não são propriamente adeptos da novela. Ou seja, um sucesso de crítica e de público, inclusive entre jovens”.

A complexidade das personagens ficou clara com a constante mudança de comportamento das protagonistas. Nina não era completamente boa e Carminha não era só maldade. O autor já havia explorado o deslocamento entre vilã e heroína em A Favorita (2008) – com Donatela (Cláudia Raia) e Flora (Patrícia Pillar). Entretanto, desta vez, o deslocamento se deu com mais sutileza, sem que o público esperasse a alternância entre Carminha e Nina/Rita.

“No final de A Favorita, houve explicações que tinham a ver com problemas psicológicos seríssimos, que vinham da infância, tratados quase como uma psicanálise, que sem dúvida também aparecem na explicação do passado de Carminha, como o mistério dos assassinatos e o fato de ela ter sido jogada no lixo”. Esse tipo de história é o que caracteriza o estilo de João Emanuel Carneiro.