Emenda propõe submeter Supremo ao Legislativo

PEC 33, do deputado Nazareno Fonteles (PT-PI), tem causado mal estar entre os dois poderes, que argumentam excessos e invasão de atribuições

Segundo a divisão dos Três Poderes adotada na Constituição de 1988, os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário possuem funções independentes capazes de manter o pleno funcionamento da democracia federalista. A proposta de emenda constitucional 33/2011 (PEC 33), no entanto, tem motivado discussões acaloradas sobre até que ponto uma instituição pode se envolver nas questões referentes à outra.

Aprovada em abril pela Comissão de Cidadania e Justiça (CCJ), a proposta prevê mudanças na atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), além de submeter decisões de inconstitucionalidade em emendas ao Congresso Nacional, o ponto mais polêmico do texto.

Considerada pelo Judiciário como uma invasão do Legislativo em suas atribuições, a PEC 33 foi também chamada por parte da mídia como a PEC do PT, caracterizada como uma retaliação da bancada governista à derrota que o partido sofreu no recente julgamento do Mensalão.

Apoiada por alguns deputados, a proposta sofreu duras críticas dos ministros do STF e sua tramitação foi, temporariamente, suspensa pelo presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN).

Infográfico: Marina Vieira
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O papel de cada poder

Segundo a legislação brasileira, as emendas constitucionais são um recurso capaz de modificar trechos pontuais da constituição, sem ter que convocar uma nova constituinte. Para que uma emenda constitucional entre em vigor, o primeiro passo é a sua admissão pela CCJ, que avalia se o texto não fere as cláusulas pétreas da Carta Magna: o Estado federalista, as garantias ao voto e aos direitos fundamentais e a separação entre o Executivo, Legislativo e Judiciário. Somente então, caso admitida, a proposta é levada para votação na Câmara dos Deputados e depois no Senado.

A separação dos poderes em cláusula pétrea, tema central da discussão que gira em torno da PEC 33, é o mecanismo que evita que um deles se aposse de funções de outro, mantendo-os independentes e harmônicos entre si, garantindo a manutenção do Estado Democrático de Direito.

Infográfico: Marina Vieira
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Intromissão do Legislativo

O advogado Roberto Dias, doutor em direito constitucional e coordenador do curso de direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), defende que a PEC 33 viola uma das quatro cláusulas pétreas da Constituição brasileira.

O Supremo Tribunal Federal assume o papel de guardião da Constituição Federal de 1988, a fim de evitar que a Carta Magna seja lesionada ou afrontada. Ao submeter as decisões do Supremo à avaliação do Congresso Nacional, a separação dos poderes pode ser interpretada como infringida, ou seja, uma intromissão do Legislativo no que caberia ao Judiciário.

Dias argumenta ainda que a Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas e conhecida como Polaca por seu rigor autoritário, contava com o artigo 96, muito similar ao que tem sido proposto na PEC 33. O texto regulamentava que, caso fosse declarada a inconstitucionalidade de uma lei ela poderia ser novamente submetida à avaliação do Parlamento, à critério exclusivo do Presidente da República. Se parlamentares a confirmassem por maioria de votos, a decisão do Tribunal perdia seu efeito. “Podemos encarar esse projeto de emenda como um retrocesso, algo que remete a épocas não democráticas no país. Isso desestabilizaria a divisão dos três poderes, que tem funcionado bem no Brasil democrático”, explica.

Supõem-se diversos motivos para esse recente desentendimento dos poderes legislativo e judiciário. Entre eles, o julgamento do Mensalão. A decisão de cassação do mandato dos réus condenados ficou a cargo do STF, ainda que o Congresso acreditasse que essas punições cabiam ao regime interno do legislativo. Para Dias, há um movimento de “judicialização” da política, no qual disputas e desentendimentos entre partidos são levados ao Supremo, criando inúmeras ações de inconstitucionalidade e interrupções das tramitações de leis e emendas.

Excesso do Judiciário

Para o professor titular de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Fernando Limongi, a interpretação que se fez do projeto é a de que ele pudesse punir o Supremo em reação à atuação do judiciário no processo do Mensalão. Entretanto, segundo argumenta, a leitura das justificativas do projeto de emenda deixa claro que o que se tenta é a regulamentação de uma relação entre o judiciário e o legislativo, que é problemática.

A PEC 33 possui duas propostas que podem ser consideradas uma regulamentação da ação do Judiciário. A primeira é capacidade do Supremo em ordenar a legislação, por meio das súmulas vinculantes, que surgiram com a reforma do judiciário para agilizar o sistema jurídico brasileiro. A segunda é seu poder de declarar inconstitucional medidas de emendas constitucionais. Para Limongi, é muito raro que uma corte suprema de qualquer parte do mundo declare inconstitucional algo que está posto na constituição. “Se o Supremo tem o poder de declarar algo que foi aprovado regularmente, como a mudança da constituição, o STF tem um poder mais do que supremo. É um poder muito grande”.

Sendo vista desta forma, a proposta de emenda tem o objetivo de delimitar o poder do Supremo, exigindo um quórum qualificado com maioria de 3/4 dos votos do judiciário para aprovação de medidas que afetem a constituição, como já ocorre no legislativo. Não está em jogo, ao menos no que tange o texto apresentado pelo deputado petista, as atribuições do Supremo de julgar políticos em exercício de mandato que tenham cometido crimes. De acordo com Limongi, a proposta não pode ser considerada como ilegítima e ser tomada como uma vingança do PT ao Supremo, pelo menos do ponto de vista do conteúdo. “Ninguém está eliminando a separação dos poderes ou a autonomia do judiciário, o que se questiona é como ela é aplicada na prática”.

Para os próximos dias, é aguardado um debate democrático entre parlamentares e ministros brasileiros sobre qual rumo dar a esses impasses. O advogado Roberto Dias explica que movimentações e coalizões partidárias são parte de todo ambiente político, mas ressalta que é a harmonia e a colaboração dos poderes que deve ser alvo das tramitações e decisões, a fim de que o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito no país seja garantido.