Coleção abriga memória de militantes na ditadura

Editora júnior lançará coleção inédita de livros com caráter biográfico e memorial de militantes do período ditatorial no Brasil

Será lançado no dia 14 de junho, no prédio da História, a coleção de livros “Memória Militante”, produzida pela Com-Arte, editora laboratório do curso de Editoração da Escola de Comunicações e Artes. As três obras que inaugurarão o projeto são “Conversa entre amigos”, de Catullo Branco, “Militante por uma utopia”, de Paul Singer e “A Surda”, de Wilson Barbosa. Os textos de Catullo Branco e Paul Singer têm caráter biográfi co e memorial, enquanto o de Wilson Barbosa se trata de um conto que, apesar da aparência ficcional, também traz lembranças do autor.

A edição é destinada ao público jovem e, por isso, os exemplares serão de bolso. Sobre a escolha deste público, os organizadores Marisa Midori, docente do Departamento de Jornalismo e Editoração, e Lincoln Secco, professor de História Contemporânea da USP, acreditam que a abertura a novas formas de política, sem a necessidade de se posicionar nem ter um pré-julgamento, é o que faz dos jovens um público especial para a coleção. Marisa conta que colocar a ideia em prática não foi algo muito planejado. Lincoln apresentou a ela o texto de Catullo Branco e a ideia da Memória Militante foi nascendo juntamente com chegada dos escritos de Wilson Barbosa e Paul Singer.

Quanto a escolha da Com-Arte como editora, Secco acredita que ela aconteceu pelo vínculo do assunto com a USP. “Todos os autores são ligados à USP e cerca de 10% dos desaparecidos no regime militar eram da Universidade”.

Catullo registrou suas memórias em 1986, um ano antes de morrer. Ele queria que o texto fosse lido em um momento em que as condições sociais e políticas estivessem maduras para que seu partido, o Partido Comunista do Brasil (PCB), não fosse afetado pela publicação. Para Marisa Midori, este é o momento ideal para a publicação dos volumes. “Hoje é o momento. Há debates, a Comissão da Verdade completou um ano e a coleção pode contribuir com o tempo em que vivemos”. Wilson Barbosa

concorda ao dizer que a população tem sentido que há democracia no país: “Toda nação que tem democracia reflete sobre seu passado”, afirma.

Ficção e realidade

Dos três números da coleção que serão lançados no dia 14, A Surda, por se tratar de um conto, gera curiosidade sobre a verdadeira história que teria impulsionado o autor a escrevê-lo. Barbosa, militante de esquerda durante a ditadura militar, conta que escreveu o conto em 1974, exilado na Suécia, e distribuiu para alguns amigos. “Eu não vivi o conto, mas ele faz parte do meu desespero e desabafo”, diz. Ele escreveu o texto após saber que uma amiga próxima, chamada Aurora, havia sido morta pela polícia com uma “coroa de Cristo”, anel metálico que provoca o afundamento do crânio. A partir daí, o escritor conta que não parava mais de pensar em como aquilo teria acontecido. “É como se você não tivesse honrado os seus companheiros. Você os vê sendo destruídos e você ainda está lá”, diz. Ao escrever a história, Barbosa retratou o que imaginava.

Os outros personagens do conto também são inspirados em pessoas que conviveram com o autor, ou de que se tinha notícia na época. O delegado Antunes, personagem principal, praticava tortura, mas não a encarava bem em casos políticos. No entanto, foi conivente com o crime da história. Antunes foi baseado em dois amigos da juventude do autor. Um deles serviu o exército com ele e convidou-o certa vez para uma conversa em sua delegacia. Barbosa conta que a conversa era a todo tempo interrompida pelos gritos que vinham de outras salas. Apesar disso, o personagem é retratado de forma sensível pelo autor, mostrando as crises internas que o delegado enfrenta durante a história. “Eles [os militares] não me assustam, são humanos mesmo torturando”, afirma Barbosa.

Lincoln define o conto como obra literária realista que consola a literatura como ficção. O autor considera bom que seja ou pareça uma ficção: “Senão fica parecendo que eu quero acusar alguém, e não se pode acusar ninguém de ter participado da história de seu tempo.” Ainda assim, ele faz questão de ressaltar a inocência atribuída a Aurora no conto. “Eu a retrato como inocente, porque ela era inocente”. Ele diz que para uma organização ser considerada criminosa, é necessário que ela tenha astúcia e que a Ação Libertadora Nacional (ALN), não a tinha. Acrescenta ainda que nem mesmo a luta armada da época pode ser tida como criminosa: “Aquilo era brincadeira de criança”, diz, referindo-se a ingenuidade com que, na sua opinião, os militantes procuravam lutar por seus ideais e à força desproporcional dos militares em relação ao movimento.

Hoje professor aposentado pela USP, Barbosa sofreu tortura quando foi preso em Sergipe. Ele, porém, não se considera um revolucionário aposentado, pelo contrário. “O sentimento revolucionário não se aposenta! Só não milito mais, porque não tenho com quem militar”. Em comparação com os dias atuais, ele acredita que, assim como o delegado Antunes, a sociedade continua praticando a tortura por motivos sociais e não por motivos políticos e pensando que é possível separar as duas coisas.