Leis que regulamentam territórios indígenas só valem no papel

A Constituição de 1988 e o processo de redemocratização do país deram um novo tratamento aos povos indígenas brasileiros. Até então, a relação do Estado com os índios, estabelecida pelo Estatuto do Índio de 1973, tinha como perspectiva a integração e assimilação dos mesmos à cultura do homem branco. A nova Carta Magna deu ênfase ao multiculturalismo nacional e ao direito dos indígenas de preservar suas tradições. No entanto, boa parte do que foi estabelecido legalmente não tem sido cumprido na prática pelas autoridades.

“Enquanto em outros lugares do mundo essa ideia de assimilação já foi superada, no Brasil ela persiste”, declara Larissa Mies Bombardi, professora do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH). “Nossa sociedade ainda pensa que a autonomia dos índios é uma fase a ser superada”.

A lei determina que as riquezas do solo, rios e lagos existentes nas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são de usufruto exclusivo deles, exceto em casos de relevante interesse público da União. Mesmo assim, as áreas são alvo de constantes invasões de fazendeiros, mineradores, pescadores e posseiros. De acordo com a pesquisa Conflitos no Campo Brasil 2012, do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, 15% do total de conflitos por terra no país envolvem famílias indígenas.

Além disso, algumas dessas terras são cortadas por obras públicas de infraestrutura ou mesmo afetadas pelas consequências ambientais da construção de usinas hidrelétricas. “O que é de relevante interesse público da União ainda não foi disciplinado pelo Congresso Nacional, a quem cabe fazê-lo por meio de uma lei complementar”, destaca Robério Nunes Filho, Procurador Regional da República na 3ª Região – São Paulo e Mato Grosso do Sul.
Um exemplo recente é a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, que afetará as terras do povo Munduruku. O processo tem sido apontado como inconstitucional.

Segundo o procurador, a principal violação decorre da ausência de consulta prévia aos índios. A Carta determina que o aproveitamento dos recursos hídricos – incluídos os potenciais energéticos –, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados se ouvidas as comunidades afetadas. A convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, exige o mesmo, e ressalta que os procedimentos aplicados na consulta devem ser adequados.

“Mas não é o que acontece aqui”, acredita Camila Salles de Faria, doutoranda do Programa de Pós Graduação em Geografia Humana da FFLCH. “Eles são consultados em uma linguagem jurídica que a maioria não compreende”.

No caso de Belo Monte, a lista de presença passada pelos consultores aos indígenas foi usada para referendar um suposto acordo que, em verdade, não ocorreu. Larissa ressalta que a consulta foi capciosa, dirigida apenas para o interesse da construção da usina.

Atraso na demarcação

Segundo a Constituição Federal, o prazo final para a demarcação de todas as terras indígenas brasileiras seria outubro de 1993. Duas décadas se passaram e, no entanto, cerca de duzentos territórios, de um total de 672, ainda precisam ser homologados, segundo dados da Funai.

Para o procurador Robério, a ausência de vontade política quanto ao assunto provém da oposição à concessão de terras aos índios, exercida por fazendeiros e políticos ligados à bancada ruralista do Congresso Nacional. “Nesse quadro, nunca foram dadas à Funai as condições financeiras e materiais adequados para fazer a demarcação das terras”, afirma. Além disso, os constantes processos judiciais que o órgão federal e seus profissionais sofrem, em geral por parte dos ruralistas, prejudica o trabalho.

A demora na execução do que foi definido em lei é alvo de críticas dos povos indígenas. “A luta que seria de cinco anos vira de trinta”, comenta a doutoranda Camila. Ela explica que o método empregado pela Funai na demarcação já é, em si, vagaroso. As terras passam por uma série de estudos antropológicos, históricos, fundiários e cartográficos para fundamentar sua delimitação. Tramitam ainda pelo Ministério da Justiça para serem autorizadas para a demarcação e, posteriormente, homologadas pelo presidente da República, para que sejam por fim regularizadas com registro em cartório.

No entanto, Larissa pontua a importância do método adotado pelo Órgão: “Ele dá atenção ao sentido simbólico do território e tem toda a competência profissional necessária para avaliar o que significa, de fato, a terra para o indígena, fazendo a demarcação da maneira correta”.

Em meio à maior crise indígena do governo Dilma Rousseff, instalada pela discussão em torno da PEC 215, a presidente da Funai desde abril de 2012, Marta Azevedo, renunciou ao cargo no começo do mês, alegando problemas de saúde.