Proposta ruralista limita demarcação de terras

Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215 quer submeter homologação dos pareceres da Funai quanto às reservas indígenas ao poder Legislativo

No fim do mês de maio, mil produtores rurais interromperam um discurso da presidente Dilma Rousseff em Campo Grande aos brados: “Demarcação, não. Sim à produção”. Um dia depois, o índio Oziel Gabriel da tribo Terena foi morto na fazenda Buriti, em Sidrolândia, no Mato Grosso do Sul. O índio morreu após ser baleado durante conflito com a Polícia Federal em uma tentativa de reintegração de posse. Desde então, a permanência dos índios na fazenda e os protestos de agricultores acirram as discussões em torno da demarcação de terras indígenas.

A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) busca a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que submete ao poder Legislativo a homologação dos processos de demarcação de terras indígenas realizados pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A maioria dos parlamentares que questiona a ação da Funai pertence à chamada “bancada ruralista” e alega que as ações de demarcação de territórios indígenas no Brasil conflitam com os interesses dos latifundiários agroexportadores.

De acordo com a FPA, a bancada é composta por 200 parlamentares, entre senadores e deputados de diversos partidos. Uma vez que a população rural brasileira é 15% do total – segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) -, críticos dos ruralistas apontam o que chamam de “super-representação”. Para eles, o alto número de ruralistas no Congresso Nacional sugere um “lobby” favorável aos interesses dos grandes agricultores, dificultando os processos de demarcação, que atualmente levam em média 5, 10 ou até 15 anos para serem homologados.

“A situação é difícil para os índios, já que estão lidando com um grupo muitíssimo organizado e forte do lado ruralista. Os índios estão conscientes da mudança de prioridade, caso essa PEC 215 seja aprovada e, por isso mesmo, se manifestam contra” diz o professor Artur Zimerman, membro do Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do ABC (UFABC). Segundo ele, a super-representação é legítima, mas prejudica os índios. “Numa democracia, há o direito de organização de grupos em torno a seus interesses. Porém, os índios não têm essa força e representação e, portanto, perdem bastante”.

Além disso, no dia 15 de maio, um requerimento (RCP 22/2013) pedindo a implantação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigue os processos de desapropriação e demarcação de terras desenvolvidos pela Funai e pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (Incra) foi protocolado na Câmara dos Deputados.

infográfico: Mateus Netzel / Diego Rodrigues/Noun Project. Dados: Centro de documentação Dom Tomás Balduino
infográfico: Mateus Netzel / Diego Rodrigues/Noun Project. Dados: Centro de documentação Dom Tomás Balduino
Posição ruralista

Alceu Moreira, deputado federal pelo PMDB/RS e membro da FPA, afirma que as decisões sobre demarcações devem ser reguladas por leis e não por órgãos como estes. O deputado, que encabeçou o requerimento pela CPI Funai-Incra, defende a PEC 215 como uma segurança para os proprietários de terra que, na sua opinião, com os métodos adotados atualmente, podem perder suas terras a qualquer momento. “A vida das pessoas está ali, terras plantadas, casas”, diz. Em contrapartida, Zimerman não acredita que esta medida favoreça os pequenos produtores e assevera: “Imagino que o maior benefício dessa PEC seja direcionado aos grandes produtores e ao agronegócio”.

Enquanto o deputado argumenta que a força da bancada ruralista no Congresso é legítima e representa um país de economia baseada na agropecuária, Zimerman diz: “Chega a ser até desleal a concorrência entre latifundiários de um lado e índios de outro. A divisão, tanto de poder como representativa, é bem desigual. O Estado tem a obrigação de protegê-los, pois dos poucos índios que sobraram, temos que conservar e, inclusive, indenizar muitos grupos pelas atrocidades históricas cometidas contra essas pessoas”.

O deputado critica os métodos usados pela Funai para demarcar as terras, dizendo que os estudos antropológicos que embasam a decisão é feito por meio de relatos de índios, sem consultar o que os agricultores têm a dizer. “Isso é uma vigarice. Querem transformar esses territórios em terras de uso comum com uma clara intenção de implantar o socialismo no país”. Ele caracteriza tais critérios como “caprichos ideológicos”.

No entanto, sobre o argumento dos ruralistas de que os critérios de demarcação não estão bem definidos, o antropólogo Daniel Calazans Pierri, do Centro de Estudos Ameríndios (Cesta) da USP, diz: “Se eles dissessem que querem aprimorar os critérios, até poderíamos acreditar, mas eles tratam como se não existissem as definições na Constituição, o que não é verdade”.

Problemas na emenda

Pierri afirma que os índios não estão se colocando contra o agronegócio, como sustentam os ruralistas. O argumento de que ações anti-indígenas são necessárias para o desenvolvimento do economia agropecuária, devido à importância deste para o PIB, repete uma lógica de defesa de interesses dos latifundiários recorrente desde o período colonial brasileiro.

Ele esclarece que as áreas ocupadas pelos índios não são tão grandes quanto os ruralistas fazem parecer: “Os ruralistas dizem que os índios já têm 13% de terras brasileiras, porém 12% dessas áreas ficam na Amazônia e 1% no restante do território nacional”.

Para o antropólogo, o interesse da PEC 215 é atrasar os processos de demarcações. “A PEC tem ganhado bastante força com apoio de ruralistas e anti-indígenas de ocasião. Se a medida for aprovada, a expectativa é de que não saia mais nenhuma demarcação”.

Submeter os laudos de demarcação de terras a agências como a Embrapa ou mesmo ao Ministério da Agricultura, que são propostas do Legislativo atual, reedita medidas utilizadas na ditadura militar, segundo Pierri. “Na época, o parecer da Funai era avaliado por um ‘grupão’ que não utilizava os critérios definidos pela fundação, o que dava caráter anticonstitucional ao processo. A PEC 215 tem essa característica, ‘politizar’ critérios que já são definidos por lei”.

O deputado Alceu Moreira também não enxerga a submissão à Embrapa, tampouco ao Ministério da Agricultura como uma solução permanente. Ele acredita que, no momento, esta pode ser uma alternativa positiva, mas que em longo prazo as decisões podem ser influenciadas por outros “fundamentalistas ideológicos” que por ventura assumam a liderança destes órgãos.

Conflito e protesto

O caso da fazenda Buriti segue sem desfecho. Reconhecido em 2010 pelo Ministério da Justiça como posse permanente dos índios da etnia Terena, o território identificado como indígena pela Funai desde 2001, aguardava a homologação da presidente Dilma Rousseff. Entretanto, decisões judiciais suspenderam o curso do procedimento demarcatório e a última decisão do Tribunal Regional de Justiça foi favorável aos agricultores.

O deputado Moreira informa que, no dia 14 de junho, um protesto mobilizará produtores rurais e defensores do agronegócio. Eles pretendem “parar as rodovias do país” para pedir a suspensão das demarcações já feitas no Brasil. No site da FPA, o evento está confirmado. 14 estados foram convocados.