SP reacende debate sobre o transporte público

Por meio dos chamados que levaram milhares às ruas de São Paulo pela revogação do aumento da tarifa do transporte público, convocadas pelo Movimento Passe Livre (MPL), se escancarou a falta de transparência dos investimentos no setor e os latentes problemas estruturais.

Foram seis protestos que exigiram a redução do valor de R$3,20 para R$ 3,00. A presença da população nas ruas levou o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), a convocar uma reunião extraordinária do Conselho da Cidade, no dia 18 de junho. No dia seguinte, a revogação foi anunciada em conjunto com o governador Geraldo Alckmin.

Infográfico: Marina Vieira
Infográfico: Marina Vieira

Segundo um dos conselheiros, o presidente da Cooperativa Paulista de Teatro Ney Piacentini, que participou da reunião, a adesão à pauta da redução da tarifa no Conselho foi quase unânime. A divergência foi sobre o foco da resolução do problema. “Para alguns, o problema está no lucro excessivo dos empresários. O Movimento Passe Livre teve essa lucidez, de que o prefeito não pode desviar a verba de outros investimentos sociais”, diz o conselheiro.

Haddad explicou em audiência pública como se formou o montante dos R$3,20, tarifa antes pretendida. Haddad refutou o argumento de que a tarifa poderia ser mais baixa, explicando os acréscimos gerados com a criação do bilhete único. “A tarifa hoje poderia ser R$ 2,03 se o Bilhete Único não existisse. Só que quem pega duas viagens ia pagar R$ 4,06”, disse ele. Entretanto, o bilhete único, implantado na gestão de Marta Suplicy (PT), é considerado uma das mais bem sucedidas políticas públicas de mobilidade urbana, permitindo que o usuário pague apenas o valor de uma passagem dentro de um período de três horas. “Se nós tivéssemos seguido aquela estratégia, nós não estaríamos na situação de mobilidade que estamos hoje”.

A crítica dos movimentos populares, entretanto, vai no sentido da distribuição da verba pelas companhias de ônibus metropolitanos não ser transparente, a dita “caixa preta do transporte público”. “Não só não sabemos de que maneira os gastos podem ser reduzidos, como não sabemos quem lucra com o sistema implantado”, diz Mariana Toledo, membro do Movimento Passe Livre (MPL) e estudante de pós-graduação em sociologia da USP.

Direito de ir e vir

Não só às margens das decisões fica a população, mas também a garantia pelo Estado de que seu direito ir e vir será resguardado. Virgílio Afonso da Silva, professor de direitos fundamentais da Faculdade de Direito da USP, explica que o direito ao transporte público não é garantido diretamente pela Constituição. “Apenas no rol de direitos dos trabalhadores, ao definir o salário mínimo, a Constituição estabelece que ele deve ser capaz de atender às suas necessidades, incluindo o transporte”. Atualmente, o transporte é uma questão de política pública. “Não há dúvida de que a impossibilidade de acesso ao transporte público é um obstáculo ao pleno exercício do direito de ir e vir, um direito fundamental”, diz ele.

Nesse sentido, figura uma forte crítica do MPL. “Nós acreditamos que o transporte deve ser, sim, um direito constitucional. Inclusive defendemos a aprovação do Projeto de Lei que inclui o transporte no rol dos direitos sociais na Constituição Federal [PEC 90/11, artigo 6º da Constituição]”, explica Mariana. O transporte passaria então a ser mais um direito do cidadão, como a saúde e a educação. “A escola pública e a saúde não são tarifa zero? O que acontece no transporte é a privatização, a mercantilização de direitos”, diz Ney Piacentini.

Em 2010, já eram 37 milhões de brasileiros que não tinham como pagar a condução diária, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e esse número só aumenta a cada reajuste de tarifa.

Planejamento

O valor da passagem não é o único fator que dificulta a mobilidade urbana na capital paulista. O paulistano passa cerca de 80 minutos por dia no transporte público, sendo que 25% desse total é gasto só na espera dos ônibus, cerca de 3 dias do ano. Os dados são do aplicativo para celulares Moovit, que permite ao usuário compartilhar informações em tempo real.

O alto tempo gasto também está relacionado ao fato de as pessoas morarem longe do trabalho. “O chamado modelo de crescimento periférico foi alavancado pela possibilidade do transporte público levar enormes contingentes de trabalhadores diariamente das periferias para seus postos de trabalho”, explica a professora Regina Maria Prosperi Meyer, uma das coordenadoras do Laboratório de Urbanismo da Metrópole (Lume) da FAU (USP). Para ela, o problema seria atenuado com a “criação de novas centralidades em toda a cidade, de forma a diminuir a necessidade de grandes deslocamentos.

O planejamento também influencia no tipo de transporte a se investir. A professora Maria Cristina Leme, coordenadora do Laboratório de Planejamento Urbano e Regional da FAU, explica que na década de 30 foi feito o Plano de Avenidas para a cidade. “Foi o momento em que se estava definindo entre o transporte sobre trilhos e sobre pneus, e a decisão foi pelo sobre pneus”, conta. Esse sistema foi implantado até a década de 60 e complementado pelas vias expressas –  como as Marginais. O problema é que houve pouco investimento no transporte de alta capacidade, como o trem e o metrô, e muito no de baixa, como os ônibus e os automóveis.

Para enfrentar a demanda atual, Regina acredita que é preciso investir na multimodalidade – ônibus, metrô, trem e bicicleta – funcionando de forma articulada. A professora Maria Cristina também ressalta a necessidade de uma rede de transporte que tenha um alcance metropolitano, e não apenas municipal. Ela acredita que o investimento no transporte de alta capacidade é a melhor solução. “Os ônibus vão continuar existindo. Podem haver formas mais eficientes, como os corredores, mas eles não resolvem o caso de São Paulo. Esses meios devem coexistir”.

No entanto, ela explica que o transporte sobre trilhos exige um planejamento a longo prazo, dado o alto investimento e a infraestrutura estática. A curto prazo, a coordenadora do Lume ressalta os corredores de ônibus e os recentes investimentos no metrô. “Sobretudo a Linha 6 (laranja), que terá 32 quilômetros de extensão. Ela cruzará áreas centrais e precárias quase nas mesmas proporções, aliviando o principal eixo de demanda”.