Meia-entrada não garante o acesso à cultura

Nova legislação estabelece cota mínima para o benefício, mas não define políticas públicas mais amplas que assegurem a popularização de eventos culturais

Sancionado neste mês pela presidente Dilma Rousseff, o Estatuto da Juventude estabelece direitos para cidadãos de 15 a 29 anos. Segundo o documento, além de estudantes, jovens com renda mensal familiar de até dois salários mínimos terão direito à meia-entrada em eventos culturais e esportivos. Além disso, este benefício é limitado a 40% dos ingressos disponíveis para cada evento.

Após a sanção, o estatuto tem 180 dias para ser regulamentado, passando a valer só depois deste período. É a segunda regulamentação federal no quesito da meia-entrada, já que, anteriormente, o benefício aos jovens era definido por leis municipais e estaduais. A primeira foi o Estatuto do Idoso, que garantia o auxílio a maiores de 60 anos.

Entre as questões não definidas pelo programa estão a nomeação de um órgão fiscalizador da cota de meia-entrada e o processo de emissão de carteirinhas aos jovens de baixa renda. O documento só estabelece que as famílias devem estar registradas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) e que a expedição será gratuita. Além disso, outro ponto é a regulamentação das leis municipais e estaduais anteriores ao estatuto.

Ferdinando Martins, vice-diretor do Teatro da USP (Tusp), afirma que “não há uma regulamentação de como a lei federal vai ficar no caso de São Paulo”. O estatuto considera como estudante, jovens matriculados no ensino regular (educação infantil, ensino fundamental e médio) ou em cursos superiores. Já a cidade de São Paulo amplia o direito a cursos profissionalizantes (básico e técnico), pré-vestibular e pós-graduação. “Na prática, a meia-entrada no município de São Paulo é praticamente universal”, afirma Martins. Ele explica que, quando os produtores vão definir o preço do ingresso, já consideram que a quase totalidade do público será de meia-entrada. Deste modo, o valor pago não é efetivamente a metade. “Não sou contra a meia-entrada, mas é preciso corrigir estas distorções”, opina.

Infográfico: Fernando Oliveira

Para o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da USP, a nova lei significa a retirada de um direito fundamental para o acesso à cultura e ao lazer, ao restringir o benefício de pagar menos por ingressos, que antes era ilimitado. Além disso, é uma medida que vai na contramão do momento vivido pelo país. “A juventude tem lutado e se manifestado muito, a dinâmica é que nós possamos conquistar mais direitos e, infelizmente, essa restrição significa a retirada de um”, explica Pedro Serrano, representante do diretório. Ele completa dizendo que um direito não pode ser debitado da conta das pessoas que compram o ingresso em seu preço integral. “O direito à meia-entrada não pode ser tratado de forma mercadológica”, afirma.

Carlos Martinelli, pesquisador na área de contabilidade da Faculdade de Economia e Administração (FEA-USP) e que realizou um estudo específico sobre a meia-entrada e seus impactos na precificação dos ingressos, conta que, apesar do governo tornar o benefício uma obrigatoriedade, ele não oferece nenhum tipo de ressarcimento. Portanto, fica nas mãos do produtor custear a meia-entrada, e ele o faz através de uma transferência de renda, aumentando o preço da inteira para subsidiar a meia. “Uma das formas de se fazer isso é estabelecendo um ticket médio, inflando o preço da inteira para que, na média ponderada, se obtenha o preço originalmente estipulado”, explica. Outra maneira, segundo Martinelli para que o comprador da entrada inteira não seja tão lesado, é a chamada “meia-entrada universal”, em que o preço ideal seria dobrado, dando, porém, alternativas de se obter o desconto de metade do valor, como através da doação de alimentos.

Taxa de ocupação deve ser observada

Martinelli ainda alerta para a questão da taxa de ocupação, que explicita a necessidade de regras específicas para teatro, cinema e shows. “A grosso modo, é comum a faixa de pagantes de meia-entrada girar em torno de 80%. Com a cota limite de 40%, é preciso observar se a parcela restante estará disposta a pagar o preço de inteira, mesmo com uma baixa no valor desses ingressos”, afirma.

Para o pesquisador, no caso dos shows, o público provavelmente irá pagar, pois estes eventos lidam com o ineditismo. É diferente para cinema e teatro, que possuem várias sessões. “Eu vejo um risco grande da ocupação ficar próxima aos 40%”. Deste modo, Martinelli conclui que a criação da cota ajuda no planejamento de preço, mas não resolve o problema por inteiro.

Meia-entrada não é a única culpada

“Há outros fatores que influenciam e encarecem o preço dos ingressos de shows, a meia-entrada não é a única vilã”, comenta Martinelli. Para ele, a recente forte concorrência entre produtoras é um elemento de grande impacto para que se determine o valor dos bilhetes. Em um segmento qualquer da economia, o aumento da concorrência resulta em melhora da qualidade do serviço e baixa no preço, porém, no caso das produtoras responsáveis pela realização de grandes shows, a situação envolve outras complicações. A inflação de cachês, o conflito de agenda, a disputa de patrocínio e a falta de venues (locais onde os shows acontecem, seja um teatro, arena multiuso ou estádio de futebol) resultam em maiores custos de produção e logística, além de maiores gastos com a mídia para divulgação.

“Isso tudo contribui para que haja uma baixa venda de ingressos, já que são muitos shows na mesma época e com públicos semelhantes”, diz Martinelli. Ele completa afirmando que esses fatores são resolvidos a partir da adoção de melhores condutas de ética concorrencial. Um elemento, porém, que está fora do controle de qualquer tipo de regulamentação e que deve ser levado em conta, principalmente nos preços de shows internacionais, é a cotação do dólar. Esta, quando alta, encarece muito os custos de produção.

Veja mais: pesquisa de Carlos Martinelli http://www.eac.fea.usp.br/destaque/arquivos/USP_MEIAENTRADA_2013.PDF