Necessidade do uso de animais em testes gera divergências entre ativistas e pesquisadores

Cientistas afirmam que, embora já haja métodos alternativos, eles ainda não suprem a necessidade do uso de cobaias nas pesquisas, enquanto organizações de proteção aos animais ressaltam que a fiscalização dos testes deveria ser mais rígida

A invasão do Instituto Royal, no interior de São Paulo, por ativistas para o resgate de cães da raça beagle que estariam sofrendo maus tratos, ampliou o debate sobre os limites do uso de animais em testes de remédios, vacinas, e demais pesquisas e estudos científicos. Mesmo sem a confirmação, até o momento, de que os cães do Instituto eram realmente maltratados, o caso virou destaque na grande maioria dos jornais e revistas.
O laboratório fazia uso de cachorros, coelhos e ratos como cobaias para experimentos científicos. A denúncia foi enviada ao Ministério Público Federal, que até o momento não encontrou irregularidades no Instituto no que diz respeito às determinações do Concea (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animais), mas ativistas consideram discutível até mesmo a regulamentação do órgão.

Legislação

De acordo com a lei nº 11.794, de 8 de outubro de 2008, o uso de animais em atividades de ensino e pesquisa é autorizado no Brasil. Cabe ao Concea, regulamentado pela mesma lei, zelar pelo cumprimento das normas relativas à utilização humanitária dos animais, além de estabelecer quais instituições podem fazer os testes e monitorar o desenvolvimento de novas técnicas que reduzam a utilização dos bichos pela ciência.
Rosângela Ribeiro, Gerente de Programas Veterinários da ONG de proteção aos animais WSPA/Brasil, afirma que falta rigor na fiscalização da lei. “Às vezes o Concea aprova um projeto de pesquisa que no papel é adequado, mas não acompanha o procedimento para ter certeza de que, na prática, é aquilo mesmo”.
A ativista lembra, ainda, que nas universidades há uma pressão muito grande sobre os pesquisadores pela produção científica e muitos estudos de pouca relevância ou que são desdobramentos e até mesmo repetições de outros trabalhos acabam fazendo uso de animais sem necessidade e, mesmo assim, o Concea aprova. “O Concea é uma coisa nova, os cadastros das instituições são muito recentes. A gente espera que essa fiscalização passe a ser feita”.
A legislação prevê que somente instituições credenciadas ao Concea podem criar ou utilizar animais em suas pesquisa. Para obter credenciamento junto ao Concea, qualquer instituição precisa primeiramente organizar a formação de uma Comissão de Ética no Uso de Animais (CEUA).
O fortalecimento das CEUAs é essencial, segundo Rosângela, para que os estudos sejam feitos de forma responsável. “É importante que a comissão tenha autonomia. Às vezes os pesquisadores têm receio de vetar os projetos dos colegas, isso não pode acontecer”. É preciso ainda que dentro das comissões haja profissionais que tenham conhecimento de novos métodos para apontar se o uso de animais é ou não essencial à pesquisa que está sendo realizada.
Na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ), há a Comissão de Ética no Uso de Animais, que, como previsto para a formação de uma CEUA, é constituída por docentes, pesquisadores, discentes e representantes da sociedade civil e de sociedade protetora dos animais. Além de avaliar os casos relacionados a pesquisas e ao ensino, a CEUAVet também analisa e divulga questões relativas ao bem-estar animal. “A ideia é que o uso de animais não seja feito sem necessidade, pois os pareceres da comissão são sempre respeitados”, explica a professora da faculdade e membro da comissão, Eneida Carla Carvalho Celeghini.

Resultados e crueldade

Ao longo da história, algumas pesquisas resultaram em sucessos, como a vacina contra o pólio que teve ajuda de macacos. E outras, em tragédias, como o caso da talidomida, onde mais de 10 mil crianças nasceram com deformações congênitas nos membros após suas mães utilizarem, durante a gestação, tranquilizantes com esse composto, que não apresentaram nenhuma reação adversa em três anos de testes em ratos.
“Quando um medicamento chega ao mercado, são os consumidores as primeiras cobaias de fato”, declara a entidade Projeto Esperança Animal (PEA) em seu site. “Independente da quantidade de testes conduzida previamente em animais, somente os humanos podem exibir efeitos desejáveis ou colaterais na espécie para qualquer substância testada”. A entidade se põe contrária a qualquer tipo de teste e às comissões de ética: “não existe ética nesse tipo de experimentação. São vidas, sentem dor, medo e tudo mais que podemos sentir”.
A Sociedade Mundial de Proteção Animal, WSPA, por meio de sua assessoria de imprensa, frisa que, quando há necessidade verdadeira e sem outra alternativa de se usar animais em experimentações e testes, “essa utilização deve ser regulada e supervisionada por um comitê de ética e bem-estar”. Para eles, além de anestesia e equipe treinada, os testes devem poupar os animais “de todas as formas as injúrias físicas e psicológicas, incluindo medo e estresse crônicos, a dor, a fome e outros sofrimentos evitáveis”.
Lygia da Veiga Pereira, professora de Genética Humana e chefe do Laboratório Nacional de Células Tronco Embrionárias da Universidade de São Paulo, no artigo “A Escolha de Sofia – os beagles ou eu?”, esclarece que nenhum cientista sente prazer em fazer experimentações em beagles, camundongos, ratos, moscas ou minhocas. “Utilizar os chamados modelos animais é fundamental para o desenvolvimento de pesquisas que nos dão as maravilhas da medicina moderna”, explica a professora. Lygia utiliza coelhos para o estudo da Síndrome de Marfan, uma doença genética do tecido conjuntivo, que fortalece as estruturas do corpo e afeta os sistemas cardiovascular e esquelético, os olhos e a pele. Segundo a pesquisadora, os camundongos são fundamentais em seu trabalho e os testes nos animais viabilizaram a criação de novas terapias, hoje utilizadas em humanos.
“Os testes em animais protegem os seres humanos de compostos nocivos ou ineficientes”, explica. Ela afirma que os financiadores, assim como os pesquisadores também não têm prazer em usar animais para pesquisa. “Experimentos com modelos animais são caríssimos e só partimos para eles depois de usar todo o arsenal de pesquisa in vitro”.
A PEA acredita que a utilização de animais na área médico-científíca não é mais justificável e sim, um retrocesso. “Um atraso na evolução científica, além de ser um grande desperdício de dinheiro público”, explicam.

Alternativas

A entidade entende que já existem inúmeros métodos substitutivos eficientes e eficazes para serem utilizados na área médica, como análise genômica e sistemas biológicos in vitro. “Sem falar que cultura de tecidos, provenientes de biópsia, cordões umbilicais ou placentas descartadas, dispensam o uso de animais”, explica a entidade. “Vacinas também podem ser fabricadas a partir da cultura de células do próprio homem”.
Para Lygia, isso não é suficiente em todos os casos. “É claro que ao mesmo tempo [dos testes em animais] utilizamos células para esses estudos, pois quando possível, é o modelo mais fácil de se trabalhar”, explica. “Tentamos estudar tudo que é possível nelas, mas chega num ponto que não temos mais o que aprender com as células, e aí é fundamental ter o animal”. Para a pesquisadora, é com os modelos animais que é testada a a segurança das células.
Para Silvya Stuchi Maria-Engler, professora do departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo, que desenvolve peles artificiais como plataforma de testes alternativos de eficácia e segurança, existem duas questões: a do desenvolvimento de cosméticos e a de medicamentos. “Para medicamentos, não podemos deixar de utilizar animais porque necessitamos analisar respostas sistêmicas, isto é, de vários órgãos frente àquele medicamento”.
Já no caso dos cosméticos, a pele artificial pode substituir os testes em animais. O modelo de pele humana reconstituída in vitro já é uma realidade em vários países, como Estados Unidos, Japão e o continente Europeu. Para desenvolver a pele no Brasil, a professora Silvya visitou o Departamento de Dermatologia da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. “Nesse período, tive acesso amplo às células humanas, que eram obtidas de fragmentos de cirugias plásticas”, explica. Esses fragmentos que geralmente eram descartados são riquíssimos em células formadoras da pele humana.
“Após isolarmos essas células, fazemos a manutenção das mesmas em bancos de células e, quando necessário, as descongelamos e passamos a reconstituir a pele em laboratório para o teste de interesse”, conta a pesquisadora. “Nossa visão pioneira foi desenvolver o modelo totalmente humanizado, incluindo os melanócitos, que pigmentam a pele, e voltado a testes como método alternativo à experimentação animal e humana”, completa.
A pele artificial como suporte para a triagem de novos medicamentos e cosméticos tem como dificuldade a necessidade de grande suporte financeiro, técnicos especializados e a união de várias áreas, explica Silvya. “Necessitamos de uma legislação para os testes alternativos in vitro e, nesse sentido, trabalhei junto ao Ministério da Ciência e da Tecnologia e o Concea na discussão dos regimentos”, fala.
Para ela, pela inexistência de uma lei que proíba o uso de animais em testes, está ocorrendo no Brasil “uma mobilização de grupos envolvidos para que tenhamos legislação e centros de testes para eficácia e sensibilidade”. A professora entende que ter o modelo da pele artificial no país representa uma autonomia nacional e significativo desenvolvimento tecnológico.