Da reforma política aos direitos humanos

Senador Eduardo Suplicy conversou com a reportagem do Jornal do Campus sobre política, eleições, direitos humanos e mais (Foto: Thiago Neves)

Após 24 anos como Senador, Eduardo Suplicy não conseguiu sua reeleição e vai deixar o Congresso, pelo menos por enquanto. O Jornal do Campus o visitou em sua residência em São Paulo e conversou sobre as agitadas eleições, sobre os futuros desafios políticos do Brasil e sobre aquilo que deve ser feito. Suplicy sempre foi um grande defensor dos direitos humanos, e logo antes de sua saída fala sobre a necessidade de uma reforma política e sobre a execução da Renda Básica de Cidadania, assunto sobre o qual tem insistido com a recém-reeleita Presidenta Dilma.

Um dos compromissos assumidos pela Presidenta Dilma no seu discurso após a vitória foi a reforma política. Para o senhor, que trabalhou como senador ao longo dos últimos 24 anos, qual a real necessidade dessa reforma? Como ela deve ocorrer?

Acredito que seja muito importante a reforma política, e é importante que haja uma forma de consulta popular. A experiência mostra que se feita apenas pelo Congresso Nacional, se torna difícil de ser realizada. Nós tivemos uma experiência recente, pois no primeiro semestre desse ano, na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado (CCJ), eu fui relator de um projeto do Senador Jorge Viana (PT-AC) que proibía a contribuição de pessoas jurídicas em campanhas eleitorais. Consoante à proposta, dei um parecer favorável e ainda sugeri que houvesse um limite às contribuições de pessoas físicas, de mil e setecentos reais por pleito, uma quantia que julgo ser de razoável. Ou seja, nessa eleição, por exemplo, um indivíduo poderia colaborar com até cinco vezes esse valor.

No entanto, na CCJ, a maior parte dos Senadores foi contra, e quando essa proposta foi ao Plenário, encontrou nova resistência. Acredito que por uma preocupação em não perder a contribuição empresarial da campanha. Eu também apresentei um projeto de lei para que haja transparência em tempo real das doações de qualquer natureza, para cada partido e candidato. De tal maneira que na véspera das eleições, o eleitor poderia saber a natureza do financiamento de cada postulante aos cargos em disputa. Tentei também uma outra proposta, juntamente ao Senador Pedro Taques (PDT-MT), para que em 15 de agosto, 15 de setembro e no dia anterior ao pleito, houvesse essa transparência, com todas as contribuições registradas. Mas nada disso passou.

Portanto, acredito que por meio de um plebiscito, ou mesmo através de um referendo, se a população fosse consultada, e com o devido esclarecimento, penso que essas proposições seriam aprovadas. No caso de um referendo, mesmo que o Congresso tenha negado, é preciso permitir que a população se posicione não apenas sobre essas discussões, mas também sobre outras, como o voto distrital, o voto distrital misto, ou o voto em lista.

Creio que o voto distrital misto é um alternativa razoável, pois você aproxima o representante da região onde ele habita e interage com a população, mas também leva em conta figuras políticas com uma capacidade representativa mais ampla, como foi o deputado Ulysses Guimarães, ou o Fernando Gabeira, pra dar dois exemplos. Esse método já é utilizado em alguns países, e as experiências são satisfatórias. Outra possibilidade seria a eleição em dois turnos para o voto proporcional. No primeiro turno você votaria nos partidos, em seus programas. Já no segundo turno, de acordo com o número de vagas conquistadas por cada legenda, o eleitor escolhe  nominalmente os representantes de cada partido. Diversos partidos, inclusive o PT, defendem o voto em lista. Eu seria a favor, desde que o eleitor – e não somente a direção do partido – possa escolher a ordem entre os candidatos nessa lista.

Portanto, é muito importante a Reforma Política. Apesar de razoavelmente complexa, acredito que ela pode, sim, ser objeto de um plebiscito ou de um referendo. Se esse processo for depender apenas do Congresso, pela experiência que tenho observado, não haverá grandes mudanças na lógica eleitoral. Sendo que a própria OAB e membros do STF, que estão examinando esse assunto, se manifestaram contrariamente ao financiamento empresarial de campanhas.

No domingo, após o anúncio do resultado eleitoral, o senhor afirmou que o PT precisa passar por uma “reciclagem”. De uma maneira pragmática, que processo seria esse?

Acho que todos nós precisamos pensar muito sobre todos os fatores que dificultaram muito a votação para o Partido dos Trabalhadores, especialmente no estado de São Paulo e na região Sul-Sudeste. Pois depois de termos conseguido vitórias importantes, inclusive em SP, como foi a eleição de Luiza Erundina, da Marta Suplicy e, mais recentemente, do atual Prefeito Fernando Haddad, em 2014 notou-se um grande restrição aos candidatos do PT. Portanto, os integrantes do partido precisam analisar os fatores que levaram a isso.

Neste ano, em especial, eu passei a interagir muito através do Facebook. Foi por volta de fevereiro que passei a acompanhar pessoalmente todas as postagens, e também a redigir de duas a quatro notas por dia para minha página. E desde o início do ano o número de curtidas foi de cinco mil para trezentos mil, em um processo que foi acelerando ao longo das semanas e dos meses. Desde 6 de outubro, quando não fui reeleito, o número de pessoas que interagem cresceu ainda mais. Para cada postagem que eu faço tem havido diversas manifestações de apoio, dizendo solidariamente que é muito importante que eu continue na vida pública. Mas é um instrumento novo, não havia utilizado em minhas campanhas anteriores. Foi uma primeira experiência para muita gente.

Ainda na última semana, o Senador Aloysio Nunes (PSDB-SP) falou com muita braveza que através das redes sociais o PT  havia realizado grandes ofensas ao Senador Aécio Neves (PSDB-MG) e a ele, inventando histórias sobre a vida pessoal de ambos. Daí eu ponderei dizendo que o Humberto Costa (PT-PE) já havia se pronunciado, dizendo que as manifestações não eram coordenadas pelo PT, mas informei ao Aloysio que o departamento especializado em combate de crimes cibernéticos da Polícia Federal sabe e tem meios de detectar as origens das postagens. Mas as ofensas são dirigidas a todos, pois no meu próprio Facebook, apesar da maioria dos comentários serem favoráveis, de vez em quando aparecem comentários ofensivos. E disse isso ao Aloysio, que são insultos irreais, e que tenho a convicção de tudo o que faço como Senador.

O estado de São Paulo mostrou grandes restrições aos candidatos do PT nessas eleições. Acredita que a população paulista será devidamente representada pelos próximos quatro anos? A notada “onda conservadora”, na sua concepção, foi um reflexo dos protestos de junho de 2013?

O resultado eleitoral, sobretudo, é um reflexo de como foram feitas as campanhas, quais foram os recursos utilizados. Gostaria muito de ter tido a oportunidade de realizar debates com meus concorrentes ao Senado, fato que ocorreu nas eleições anteriores. Recebi diversos convites, e aceitei o maior número que pude, mas meus principais concorrentes preferiram se abster desses eventos. Em uma oportunidade, na USP Leste, fui convidado pelos diretores para ministrar um curso de 30 horas no próximo semestre. Logo após a eleição o convite foi reiterado e aceitei.

Além disso, apesar de não saber exatamente quando meus principais adversários gastaram, sei que foi muito mais daquilo que foi consumido na minha campanha. Gastei por volta de três milhões de reais, dos quais já arrecadei dois milhões e quinhentos mil reais. Ou seja, ainda fiquei com débito que será administrado pelo partido até o dia 4 de novembro. Mas esse valor para uma candidatura no estado de São Paulo é relativamente pouco, há diversos candidatos a deputado federal que gastaram bem mais do que isso.

O que explica o resultado não foi propriamente um reflexo das manifestações, tem muito mais a ver com a disponibilidade de recursos. Por isso eu ressalto a importância do debate, pois o tempo de TV é insuficiente para expor todos os pontos da minha candidatura. Pois tenho consciência de ter realizado um bom trabalho nos últimos 24 anos como Senador. Há 21 anos o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) escolhe os 100 Cabeças do Congresso, e em todos os anos eu integrei essa lista, para dar um exemplo de reconhecimento que obtive. Felizmente tive 6.176.879 votos, o que é uma grande votação, mas correspondeu a 32,55% dos votos, não fui reeleito.

No nosso formato atual das eleições, a corrida presidencial não acaba eclipsando as demais disputas?

Não seria fácil desdobrar as eleições, a população brasileira já vai às urnas há cada dois anos. O mais importante seria assegurar a devida atenção nas disputas para governadores e parlamentares. Acho que deveria ser uma responsabilidade dos candidatos aceitarem os convites para debates transmitidos pelos meios de comunicação.

Em 2012, durante a desocupação de Pinheirinho foram relatados ao senhor casos de estupro por parte de policiais da ROTA. O senhor foi quem acompanhou às mulheres em seus depoimentos, causando uma manifestação incomodada do Vereador Coronel Telhada (PSDB-SP). Esse tipo de parlamentar, ultra-conservador, recebe bastante atenção dos meios de comunicação. Na composição do nosso parlamento, qual o real papel desses congressistas? O deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL-RJ) defende que existe uma crise de representatividade na eleição desses candidatos, você concorda?

No dia 30 de setembro o Vereador Cel. Telhada (PSDB-SP) deu uma entrevista ao portal Terra e disse que essa moça, que foi vítima de abusos sexuais na reintegração de posse do Pinheirinho, voltou à delegacia falando que teria sido o senador Eduardo Suplicy quem sugeriu que ela desse o depoimento. E que ela não havia sido estuprada de fato. Uma mentira deslavada e muito grave dita pelo coronel, e dita poucos dias antes das eleições. Obviamente o intuito do vereador era me prejudicar gravemente. Qualquer pessoa que me conhece sabe que eu jamais diria a uma jovem, que fez seu depoimento chorando, pois reportou um episódio de extrema gravidade para ela, para depor uma irrealidade. Fiz questão de acompanhá-la em seu depoimento, feito perante o promotor da Infância e da Adolescência (foram prestados três depoimentos) relatando em detalhes como foi objeto de abuso sexual. Inclusive estou entrando com uma solicitação junto ao Procurador Eleitoral por danos morais e eleitorais em função desse episódio.

Agora, é um desafio para todos nós esclarecer os significados das proposições, atitudes e valores de cada um desses políticos, e também a forma como agem. Por volta do dia 22 de março houve uma manifestação por parte dos setores conservadores numa tentativa da reedição da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Mas foi realizada também uma manifestação na Praça da Sé em defesa da democracia, e fui até lá. Nesse ato havia alguns membros dos Black Blocs, fiz questão de cumprimentá-los e fui ao palanque improvisado para lembrar do sucesso de manifestações pacíficas, como as das Diretas Já.

No entanto, de maneira desonesta, foi feita uma montagem onde se colocava a minha foto cumprimentando os Black Blocs ao lado de uma imagem de dois jovens queimando a bandeira do Brasil. Essa falsa postagem foi publicada no Facebook do deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ). Assim que pude, liguei para ele e disse que o que foi feito era completamente incorreto, o deputado disse que ia tomar as providências necessárias, mas isso demorou um bom tempo. Cerca de vinte dias depois eu o encontrei no Plenário do Senado e disse que a foto continuava disponível, uma foto completamente caluniosa que estava se propagando pela rede. Foi preciso pedir para que ele ligasse para o seu assessor na minha frente e requerer que o conteúdo fosse retirado, apesar de tardiamente. Falo isso como exemplo.

O importante é o esclarecimento, e temos de enfrentar os debates, deixando claro ao eleitor o que pode ser esse Congresso mais conservador. Mas o que não impede as mais diversas manifestações, pelas redes sociais, por exemplo. Vou continuar minha batalha pelos muitos objetivos que acredito.

A trejetória política do senhor sempre foi muito ligada à defesa dos direitos humanos, ponto que foi pouco debatido nos últimos quatro anos de governo Dilma. Você enxerga algum avanço nessa questão para o próximo mandato?

Sempre agi em defesa dos direitos humanos por acreditar em tudo aquilo que pode significar a construção de uma sociedade justa e civilizada. É preciso levar em conta questões que não sejam apenas em função dos interesses próprios. Claro que todos nós queremos progredir e queremos o progresso, fico muito feliz em ver o sucesso dos meus filhos e alunos, mas me preocupo em deixar claro que devemos nos atentar aos valores que fazem parte da história da humanidade, como a fraternidade, a solidariedade, a realização de justiça. Valores tão bem expressos em um dos mais belos discursos da história, I have a dream, de Martin Luther King Jr.

A distribuição de renda mais equitativa está completamente ligada à defesa dos direitos humanos, aos direitos à cidadania. A questão carcerária e a questão indígena, por exemplo, são temas que devem ser objeto de grande atenção. Nesta semana, a CCJ, através do Procurador Geral da República, expôs como a não extradição de [Henrique] Pizzolato ao Brasil nos privou de uma grande oportunidade de discutir a questão da super-lotação em nossos presídios, pois foi justamente esse um dos argumentos da defesa do réu. Esse ponto deve ser amplamente atacado e discutido. Mas muito relacionado à esse tema está algo que considero extremamente importante e que penso que deveríamos ter maior preocupação, que é a aplicação de penas alternativas. Sobretudo no que diz respeito ao indivíduo condenado pela posse ou consumo de drogas. A redução da criminalidade violenta no Brasil está relacionada ao maior acesso à uma cultura educacional, não ao aumento do aparato repressivo.

Outro passo de extrema importância é a implantação em nosso país da Renda Básica de Cidadania. O que se refere ao direito de toda e qualquer pessoa de participar da riqueza comum da nação, através de uma renda suficiente para suprir as necessidades vitais de cada cidadão, e que a ninguém será negada. A Renda Básica de Cidadania deve ser vista como uma progressão do Bolsa Família, pois elimina a burocracia necessária para identificar o beneficiário, um possível estigma do cidadão em afirmar o quanto recebe, e a dependência existente ao complemento de renda do programa. Se todos iniciarmos dessa renda mínima, sempre haverá o estímulo ao progresso, à liberdade e à cidadania.

O programa da Renda Básica de Cidadania já é lei, mas essa lei diz que esse programa será implementado por etapas, e à critério do Poder Executivo, começando pelos mais necessitados, como faz o Bolsa Família, até que se torne uma realidade a todos os cidadãos. O Brasil foi o primeiro país a aprovar uma lei nesse sentido. Mas a progressão do programa depende de pressões públicas no sentido de dizer à presidenta Dilma que é uma boa idéia e que deve ser aplicado o quanto antes. Eu tenho sugerido a ela a composição de um grupo de pesquisa para avaliar as etapas de implementação, ou melhor, como será a transição do Bolsa Família para a Renda Básica de Cidadania.

O senhor pensa em voltar a disputar um cargo no Congresso?

Acho que essa é uma resposta que vai ser dada ao longo dos anos. Ainda tenho mandato até o dia 31 de dezembro de 2014, e minha intenção é cumprí-lo com a mesma energia que fiz durante todo o tempo. Vou tem mais tempo para ler e escrever, essa não é uma preocupação que tenho no momento.

por THIAGO NEVES