Um feriado facultativo entre 364 dias de inconsciência

Baixa inclusão, tanto de alunos quanto de docentes, mostra a importância do Dia da Consciência Negra e necessidade de debate sobre o tema (Infográfico: Arthur Aleixo)

No mês em que se celebra o Dia da Consciência Negra, a realidade da USP ainda não oferece motivos para os negros comemorarem. Dentro de seus portões, apesar de ser gritante a diferença entre a quantidade de brancos e negros, a USP parece viver, assim como a sociedade como um todo, em um mito da democracia racial. Seja por causa de um vestibular que prioriza a meritocracia ou pela própria falta de discussão acerca da questão negra dentro da Universidade, a causa dos negros ainda tem muito espaço a conquistar.

Na salas de aulas, a presença de negros está muito longe da ideal, tanto como docentes quanto como estudantes. Em 2014, por exemplo, segundo dados estatísticos disponíveis no site da Fuvest (www.fuvest.br), apenas 4,5% dos inscritos se declararam pretos, contrastando com 73% de brancos. “As pessoas não conseguem perceber que existe um abismo social e racial. Nem a contradição da baixa quantidade de pessoas negras estudantes e a inexistência de docentes negros, além da alta quantidade de pessoas negras nos serviços terceirizados, que são os mais precários, as pessoas percebem”, afirma Élice Botelho, diretora do Diretório Central dos Estudantes (DCE) e militante da causa negra.
A situação que os negros encontram dentro da USP começa muito antes dos portões da Cidade Universitária. As dificuldades que eles enfrentam desde o começo de suas vidas, relacionadas à sua origem social e à cor de sua pele, caminham lado a lado com as dificuldades que eles sofrem para conseguirem uma vaga na Universidade e com todo tipo de preconceito que sofrerão dentro dela. “O vestibular funciona como um filtro racial”, complementa o Coletivo Negro da USP de Ribeirão Preto, ressaltando que o racismo é um dos elementos que contribuem com o baixo número de ingressantes negros na Universidade.

A luta dos negros, então, não cessa depois de conseguirem uma vaga na Universidade. A batalha, na verdade, continua diária. “É necessário que ainda se travem muitos enfrentamentos contra a realidade”, afirma Élice. Para ela, é preciso problematizar e conscientizar todos, inclusive aqueles que acabam perpetuando, querendo ou não, o pensamento de que a pessoa negra na universidade está no mesmo nível social que os brancos.

A questão das cotas, por exemplo, gera grandes desencontros de opiniões, uma vez que uma parcela favorecida pelo sistema de vestibular vigente nem nota esse favorecimento e que suas condições de ascensão social serão maiores que as dos negros. “A percepção que tenho é que as pessoas acreditam que pode haver uma diminuição das diferenças, mas sem tirar o que elas já possuem, como a vaga na universidade, por exemplo. Não existe vaga suficiente na universidade pública, logo os mais favorecidos terão que perder vagas para estudantes cotistas, é muito óbvio”, conclui a diretora do DCE.

Além do senso comum observado em uma parte significativa dos alunos, convencida de que a meritocracia é uma forma de ascensão social justa, por parte da própria Universidade, pouco avanço tem sido observado nos debates sobre maior inserção dos negros nos campi e sobre os casos de racismo na USP. A manutenção do sistema de vestibular atual, defendendo a lógica da meritocracia, é um grande exemplo disso. “A Universidade se exime do debate sobre cotas raciais, não tem nenhum tipo de ação afirmativa para ingresso, tem uma política de permanência estudantil precária e não apoia os alunos negros auto-organizados”, aponta o Coletivo Negro da USP de Ribeirão Preto.

Para o Coletivo Negro do campus Butantã, a própria maneira como as decisões são tomadas dentro da Universidade prejudica a causa do negros. “As decisões são concentradas em uma quantidade ínfima de professores, além do reitor, o que não permite iniciativas do movimento negro. Não se trata apenas da falta de diálogo, mas que a atual estrutura de poder condiciona que a Universidade mantenha uma atuação bastante elitista e racista”, aponta.

Além de cotas raciais e assistência estudantil, que, de acordo com o Coletivo, são políticas muito importantes para a inserção de negros e pobres na USP, cita-se a necessidade de se diversificar a estrutura curricular dos cursos, inserindo diferentes pensamentos, culturas e técnicas, pluralizando a formação do conhecimento. “Assim, quanto mais diverso for o público universitário, e mais plural for a estrutura curricular, maior será a complexidade existente no espaço universitário, proporcionando maior preparo para refletir e atuar numa sociedade tão complexa e diversa como a nossa”, completa o Coletivo.

A causa dentro da USP Construídos por negros de dentro e fora da Universidade, os Coletivos atuam para reunir essas pessoas que sofrem racismo diariamente e buscam lutar contra isso. Podem ser integrados por alunos, professores e funcionários que buscam “existência dentro da Universidade, atuando de forma política”, como define o Coletivo Negro da USP de Ribeirão Preto. “Isso na prática se materializa na organização de eventos, rodas de conversa, palestras, discussões e atos”, completa.

O Coletivo Negro – USP (Butantã), além de defender as cotas raciais, também busca desenvolver políticas para empoderar os negros.“Defendemos plena assistência estudantil como moradia e auxílio financeiro, desenvolvemos políticas para o empoderamento do negro, através do resgate de nossa identidade e valorização de nossos aspectos culturais, religiosos e psicológicos. Num segundo momento, buscaremos formar propostas para inserir na estrutura acadêmica”.

Apesar de terem uma atuação marcante dentro da USP, movimentos de resistência e até mesmo espaços que procuram perpetuar a luta por essa causa se veem sem respaldo por parte da Universidade. Em relação ao Coletivo de Ribeirão Preto, “nunca houve um contato da universidade conosco, nunca houve nenhum contato da prefeitura ou de alguma diretoria”. Outro exemplo é o Núcleo de Consciência Negra da Cidade Universitária, que vem sofrendo constantes ameaças de demolição e o estado de sua estrutura mostra um certo descaso da USP com o espaço. “A manutenção do NCN é uma das ações mais importantes que buscamos, pois é uma das marcas de resistência que nós temos frente ao racismo estrutural na Universidade e sociedade”, afirma o Coletivo Negro da USP, no campus Butantã. Até o fechamento desta edição do Jornal do Campus, a USP não esclareceu os motivos que determinariam a derrubada do Núcleo.

Fora o apoio que é negado aos negros auto-organizados, a Universidade também se mostra um tanto quanto omissa em relação a casos de racismo dentro dos campi. O caso mais recente, que envolveu um hino criado pela bateria universitária dos alunos de Medicina de Ribeirão Preto, com citações racistas, enfatiza a fraca atuação da Universidade.
Dessa forma, grande parte da força com que o movimento negro é levado vem somente do empenho de quem sofre com todas as falhas do sistema universitário. “Acaba se tornando uma batalha convencer as pessoas da importância de lutar pela pauta racial”, afirma Élice. Para ela, trazer o assunto de maneira transversal no cotidiano é uma forma mais eficaz de se notarem as lacunas no debate da questão negra. “No caso do corte de bolsas de estudos por causa da crise da USP, é perceptível que principalmente as pessoas pobres, que em sua maioria são negras, sofrerão mais impacto negativo”, exemplifica.

As contradições cotidianas passam, então, a contribuir para uma auto-conscientização. Refletidas na sociedade, muitas vezes, as diferenças são fortemente acentuadas, e acabam funcionando como um incentivo para as pessoas se organizarem.

por CAROLINA SHIMODA