Opressivos, hinos de baterias universitárias carecem de reflexão

Nos cantos, são identificadas marcas de racismo, homofobia e machismo (Infográfico: Arthur Aleixo)

O ambiente esportivo é, sem dúvidas, um dos mais propícios a elevar os ânimos de seus participantes e incentivar a vocalização de emoções fortes, sejam elas boas ou más. Assim, não é incomum que encontremos, dentre esses sentimentos aflorados, a expressão de pensamentos agressivos e opressores, como fica evidente nos hinos racistas, homofóbicos, elitistas e machistas da grande maioria das torcidas organizadas. Nesse contexto, o cenário universitário não fica de fora: os próprios cantos das baterias das faculdades, durante os eventos esportivos, frequentemente reproduzem opressões bastante severas e que passam quase despercebidas pela torcida eufórica e agitada.

“Esporte é um ambiente preconceituoso, e o esporte universitário reproduz bastante isso. Ainda assim, acredito que é possível torcer sem ser um idiota”, afirma Fernando de Freitas, mestre da bateria da ECA (BaterECA). Em sua experiência na bateria, Fernando relata que o grupo já recebeu críticas voltadas principalmente para o canto conhecido como “ECA Maravilhosa”, que celebra os estudantes pela entrada na USP, mas denigre de forma elitista aqueles que não conseguiram passar pelo processo seletivo. Embora a música tenha sido criada para um contexto de jogos interuniversitários, para “provocar” as torcidas de faculdades particulares, ele reconhece que em outros contextos o hino acaba sendo bastante excludente e reforça uma opressão meritocrática intrínseca ao vestibular. “Eu percebi o quanto esse hino é escroto e cruel, e extremamente elitista, e passei a me sentir mal na hora de já tê-lo cantado”, explica. “Infelizmente, a maior parte das pessoas do meio da torcida (bateria, atlética e atletas mais velhos) não estão dispostos a se desapegar do seu ‘fiel instrumento’ de provocação”.

Na bateria da FEA (Bateria S.A.), o membro Bruno Ikeuti relata que a criação das músicas não parte do próprio grupo, mas sim da faculdade como um todo. “Não sei como funciona em outras faculdades, mas nossa bateria em si não cria músicas. A faculdade sim, principalmente perto do Economíadas sempre aparece uma e nós acompanhamos lá nos jogos”, explica. Ainda assim, não tardam a aparecer problemas relacionados à opressão enraizada no uso de certos jogos de palavras, para ofender e provocar o adversário. “Tem um grito nosso, cuja letra coloca a figura da empregada doméstica como alguém inferior, em que vejo um teor extremamente elitista e que pessoalmente me incomoda bastante. A minha mãe foi empregada doméstica por muitos anos… Vejo que o grito carrega a parte ‘sutil’ do pensamento, o pessoal acaba sendo opressor e às vezes nem tem consciência disso”, relata. Em dados momentos, Bruno ainda relata que a problematização do conteúdo machista de alguns dos gritos já foi trazida à tona em meio a diálogos com o coletivo feminista da faculdade.

Embora nem todos os integrantes da bateria aceitem a abertura desse debate (que, por vezes, acaba por exaltar ânimos e hostilizar a comunicação entre os grupos), o apontamento dos problemas nos hinos é um dos primeiros passos para desconstruir o pensamento preconceituoso que reproduzem. “A minha opinião pessoal é de que as baterias não deviam cantar esses hinos problemáticos. Eu entendo as pessoas não darem atenção pra eles, não fazer uma reflexão crítica e não verem problemas (como era meu caso), mas acho que a partir do momento em que se coloca essa problematização, você passa a ter consciência do que aquele hino representa. Daí pra frente, se você optar por continuar a cantá-lo, tenha a consciência de que você está sendo machista/ racista/ elitista. Preconceito não tem contexto”, concorda Fernando.

DESCONSTRUÇÃO DO DISCURSO

Embora em muitas faculdades a problematização dos discursos opressores reproduzidos nos hinos das baterias ainda esteja em sua fase inicial, na Faculdade de Direito os grupos passam por outra fase importante de desconstrução. “Desde de 2011, quando entrei na faculdade, tenho percebido um crescente repúdio às músicas opressoras. Naquela época, as músicas problemáticas eram entoadas e aceitas pela grande maioria, mas cada vez mais foram sendo questionadas, até que uma parcela bastante expressiva da faculdade passou a considerar inaceitável reproduzir músicas machistas e homofóbicas como acontecia”, relata Ana Côrtes, ex-integrante da bateria.

Vivendo a experiência da descontrução de dentro, Ana conta que, em reuniões internas, sempre defendeu a exclusão de músicas com teor preconceituoso do repertório, o que gradualmente foi dando resultado. “Na verdade, eu diria que foi um processo que se deu de fora pra dentro, não foi algo que tenha partido de participantes da bateria ou da Atlética. A insatisfação com as músicas e seu repúdio partiram em maior parte de pessoas de fora, que consideram inconcebível músicas com esse teor, entoadas dessa forma. E isso foi sendo notado e problematizado cada vez por mais gente, de forma que as musiquinhas mais explicitamente opressivas (geralmente machistas e homofóbicas) e criticadas foram banidas”, explica.

Por mais que a exclusão dessas músicas do repertório oficial do grupo já seja em si um grande avanço, ainda cabe o debate acerca de outros hinos e termos contidos nos gritos que possam reproduzir outras formas de opressão.

A desconstrução é um processo contínuo. Por mais que em um dado momento, depois de muito estudo, reflexão e observação do mundo em que vivemos, nós acreditemos estar livres de preconceitos, é sempre necessário que revisemos nossas atitudes até nos contextos mais lúdicos e relaxados. “Eu vejo potencial de mudança nas músicas e na forma de torcer. Nos últimos jogos aos quais compareci (jurídicos Rio – São Paulo), grande parte dos gritos entoados (inclusive pelos membros da bateria presentes) rebatia colocações machistas e homofóbicas das demais faculdades, utilizando inclusive músicas criadas pelo coletivo – que venceu as eleições para o Centro Acadêmico esse ano – que denunciam machismo, racismo e homofobia”, pontua Ana.

por MARIA ALICE GREGORY