“Já fui uma mulher sofredora, moradora de rua, casada, solteira, muito feliz e até meretriz”

Vítima do preconceito desde a infância, Brunna Valin hoje é socioeducadora e militante LGBT
(Foto: Stella Bonici)
(Foto: Stella Bonici)

Brunna Valin, antes de ser transexual, é mulher. Mulher forte, mulher multifacetada, que é feliz, mas também já sofreu muito na vida: fugiu de casa, se prostituiu desde os 14 anos, perdeu um marido ainda jovem, adquiriu o vírus do HIV. Já sofreu, e ainda sofre muito preconceito da sociedade heteronormativa. Morou durante a infância em Fernandópolis, e ao fugir de casa, ficou em São José do Rio Preto, onde anos depois, começou a se envolver com ONGs e militâncias a favor do movimento LGBT.
Hoje é socioeducadora do Centro de Referência e Direito da Diversidade (CRD), espaço destinado a atender homens e mulheres, profissionais do sexo, gays, travestis, transexuais
e portadores de HIV/Aids em situação de vulnerabilidade e risco social, e desenvolve ações que possibilitam a inclusão social e a geração de renda. É casada há quatro anos com seu marido, Wellington Vicente da Silva, e tem dois cachorros, o Chorão e a Berenice. Sobre seus sonhos, quer morar na Inglaterra, fazer cirurgias de readequação sexual, conquistar a casa própria e ter filhos.

Quando você se descobriu transexual, e como foi esse processo?

Eu me descobri transexual não faz muito tempo. Até meus 28, 29 anos, eu ainda me definia travesti, porque foi o que ficou mais perto para mim. Eu saí de casa muito jovem, e quem me acolheu foram as travestis. Eu não tive escolaridade, parei na 7ª série. Depois voltei a estudar por conta própria, e comecei a ler mais sobre travestilidade, e não me identifiquei dentro dela. Mas lendo sobre transexualidade, eu entendi que tinha algo faltando em mim e comecei a melhorar os meus conceitos de existência. E aí a minha ficha caiu. Comecei a me expressar como mulher transexual de fato, não conseguia me apresentar de outro modo. A partir de então, entendi o porquê de eu não aceitar o meu corpo, o meu pênis, o porquê de eu não aceitar as condições em que a sociedade me colocava.

Você disse que parou de estudar na 7ª série. Mas durante o período em que você ficou na escola, como você lidou com a sua identidade de gênero?

A primeira vez que eu descobri que era diferente, estava na escola e tinha sete anos. Todos os alunos saíram, e quando a professora me viu saindo com o caderno sendo carregado à frente do
corpo, e não embaixo do braço – porque existe uma diferença nítida na forma de carregar,
é uma questão corporal do gênero –, ela bateu na minha mão, pegou o meu material
e disse “menino não anda desse jeito. Você não é bichinha, você não é gayzinho.”
Quando eu cheguei em casa, falei para minha mãe e foi a primeira vez que me bateram
porque era diferente. E eu nem sabia que iria ser diferente, de fato.

Episódios parecidos continuaram acontecendo? De quem partia o preconceito?

Vinha de um todo, alunos e professores, mas era menor por parte das meninas. Aconteceram muitos episódios parecidos até sair da escola. Aos 11 anos eu comecei a me definir. O uniforme da escola era uma calça azul e uma camiseta branca e as meninas também tinham a opção de usar shorts. Mas como éramos evangélicos, os meninos eram obrigados a ir de calça. Eu dobrava toda minha calça até chegar na reta do joelho, para imitar o shorts, pegava a minha camiseta do uniforme e amarrava igualzinha a das meninas. Isso gerou grandes enfrentamentos. O preconceito aparecia através do xingamento, do chute nas minhas pernas, do tapa na cabeça. Eu não podia comer perto dos outros. Não podia usar o banheiro dos meninos, porque me jogavam na pia, e no banheiro das meninas, eu não podia entrar. No dia em que entrei lá, apanhei.

Qual foi sua experiência com organizações sociais e militância a favor do movimento LGBT?

Quando ainda morava em São José do Rio Preto, eu aprendi o que era ONG, o que poderia me ajudar, e comecei a ir atrás. Descobri um grupo de profissionais do sexo e de mulheres que tinham depressão. Logo depois, fui trabalhar em uma organização, o Grupo de Amparo ao Doente de Aids. No começo, cheguei lá como assistida. Não tinha forças para batalhar, vivia doente por causa da Aids. Dentro dessa ONG eu comecei a ter valorização, eles me mostraram que eu era capaz e que eu era importante. Comecei a fazer mais por mim e pelo outro. Eu fui evoluindo nessa área, e quando me dei conta, estava coordenando uma ong de travestis e transexuais, a Associação de Travestis e Transexuais do Interior (Artis), e eu já era Vice-presidente do Conselho de Saúde. Com o tempo eu “arrumei a casa”. Hoje, travestis e transexuais em São José do Rio Preto são atendidas pela delegacia da mulher quando tem seu direito violado, quando são internadas, têm direito a leito feminino, são chamadas pelo nome social, têm ambulatório próprio.

Como você chegou até o CRD?

Vim a São Paulo, de férias, e fiz uma visita ao Centro de Referência. Sabe quando você chega a um lugar e tem a impressão de que já esteve ali? Foi isso o que aconteceu comigo. Aí me convidaram para trabalhar aqui, e eu fiquei 15 dias dentro do CRD
fazendo trabalho voluntário para entender mais. Me apaixonei pelas pessoas, pelo espaço. A Thaís Souza, assistente social na época, veio perguntar se eu gostaria mesmo de trabalhar aqui, e pediu que eu mandasse meu currículo para ela. Eu mandei, e ela disse que se eu quisesse, poderia fazer a entrevista no dia seguinte em São Paulo.

O que você faz no Centro, e quais transformações foram perceptíveis para você, tanto no que diz ao seu respeito, como ao que diz respeito às pessoas que você atende?

A partir do momento que eu vim para esse espaço eu comecei a reconhecer que eu realmente era a Brunna Valin, que eu não precisava me apresentar como outra pessoa e percebi que poderia ajudar outras pessoas. E é o que eu faço. Eu ensino os usuários do Centro de referência a ver que eles também são capazes de construir outras referências. As pessoas que passaram pelo meu coletivo têm mais visibilidade, seus direitos reconhecidos e são realmente pessoas humanizadas. Cada pessoa que passou por aqui plantou uma sementinha e agora está colhendo várias flores. É isso que eu faço. Eu planto essa sementinha. Eu “prego a minha religião.” E sabe qual é a minha religião? Amor. Nenhuma outra.

por STELLA BONICI