Vale do Ribeira esbanja água em meio à crise hídrica

Bacia hidrográfica do rio Ribeira do Iguape tem volume equivalente a dois Cantareiras, mas nenhuma gota é destinada ao consumo humano
Enquanto a população de São Paulo amarga a crise hídrica no Sistema Cantareira, o Vale do Ribeira destina seu grande volume de água à produção de energia elétrica (Foto: Patricia Stavis)
Enquanto a população de São Paulo amarga a crise hídrica no Sistema Cantareira, o Vale do Ribeira destina seu grande volume de água à produção de energia elétrica (Foto: Patricia Stavis)

O Sistema Cantareira, um dos maiores sistemas hídricos do mundo, tem potencial de fornecer até 33 mil litros de água por segundo para 8,8 milhões de pessoas. Era assim antes da crise de abastecimento que atinge a região metropolitana de São Paulo desde o final de 2013. Mas a menos de 200 km daqui, na região do Vale do Ribeira, há o dobro dessa água armazenada em represas, sem ser usada para o consumo da população.
A bacia hidrográfica do Rio Ribeira do Iguape, que compreende cidades do sul do Estado de São Paulo e do leste do Paraná, é conhecida pela abundância de recursos hídricos e foi uma das que menos sofreu com a estiagem que atingiu o sudeste brasileiro durante todo o ano de 2014. Abriga oito represas, sendo seis delas no rio Juquiá, mas elas são utilizadas apenas para fornecer energia elétrica à Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), empresa do grupo Votorantim.
A concessão do governo federal à CBA pelo uso das barragens termina em 2016. A partir daí, o governo estadual almeja suprir a demanda da região metropolitana em longo prazo. É o que prevê o Plano de Aproveitamento dos Recursos Hídricos para a Macrometrópole Paulista, que sugere alternativas para o abastecimento urbano até 2035.
Porém, para o professor aposentado da USP Julio Cerqueira Cesar Neto, especialista em engenharia hidráulica e sanitária, o governo estadual demorou demais para pensar em alternativas para suprir a crescente demanda de água da região metropolitana, a maior do país, que conta com 20,9 milhões de habitantes. “A criação de um ‘novo Cantareira’ deveria ter sido pensada há pelo menos 15 anos, quando ele já havia atingido seu nível máximo de produção. Se essa preocupação tivesse aparecido antes, teríamos uma oferta de água muito maior agora e poderíamos atender a população sem problemas”, analisa o professor.
Para Cerqueira, usar as águas do Vale do Ribeira para abastecer a região metropolitana é o mais lógico a se fazer: “O Vale tem uma vazão média de água na ordem de 520 mil metros cúbicos por segundo. Para efeito de comparação, essa quantidade de água equivale a metade do que é consumido em todo o Brasil. Está sobrando água de boa qualidade. Temos água para dar e vender. O que falta mesmo é vontade política”.

De obra em obra… falta de água

Para Julio Cerqueira Cesar Neto, as várias pequenas obras que estão sendo realizadas pelo governo para combater a crise são pouco eficazes. “Medidas emergenciais deviam ter sido tomadas há tempos. Não há a possibilidade de aumentar a oferta de água de forma substancial em curto prazo. Vamos conviver com essa crise mais uns dois ou três anos. Quanto antes você colocar água aqui melhor, mas soluções a curto prazo não resolvem”.

Uma primeira experiência do governo de São Paulo de usar a água do Vale do Ribeira para abastecer a região metropolitana será feita no Sistema São Lourenço. As obras, que devem ficar prontas somente em 2017, vão captar da Represa Cachoeira do França, do Rio Juquiá, 4,7 mil litros de água por segundo de acordo com o projeto original. A água será transportada por 83 km até uma estação de tratamento em Vargem Grande Paulista para realizar a distribuição. Uma das principais dificuldades para conduzir a água é o grande desnível entre os 760 metros acima do nível do mar do planalto onde se encontra a capital e o Vale do Ribeira, que fica apenas 17 metros acima do nível marítimo.

Água: da represa ao mercado de ações

“A natureza foi pródiga com o governo. Em 2003, avisou que a coisa era séria. A crise daquele ano foi um lembrete que algo precisava ser feito”, relembra Julio Cerqueira, que também analisou a situação há mais de uma década. No dia 1º de dezembro de 2003, o volume do Sistema Cantareira chegou a 1,6% de seu volume útil.
Desde 1985, ano em que foi terminada a construção do Sistema Cantareira, nenhuma obra de porte considerável para aumentar a oferta de água foi feita. Para o professor, isso é um retrato da mudança de postura da Sabesp na década de 90, que culminou com a abertura de capital da empresa nas bolsas de valores de São Paulo e Nova York em 2002. Atualmente, 50,3% das ações da empresa são do governo do estado e 49,7% de investidores. “Até a década de 90, a Sabesp era gerida por grandes médicos sanitaristas, preocupados com a saúde da população. De lá para cá, trocaram os médicos por advogados e economistas. A preocupação principal se tornou o valor das ações e não a saúde das pessoas. Tanto que dez anos depois de abrir capital até ganharam prêmio de ações que mais se valorizaram na última década”, analisa Julio Cerqueira se referindo ao Prêmio Abrasca de 2012 recebido pela Sabesp por ter aumentado o valor de suas ações em mais de 8% em apenas um ano.
Ao contrário da crise atual, que contou com a falta de chuvas em 2014 nos meses com mais precipitação em São Paulo – de novembro a março -, em 2003 não houve chuva nos meses em que naturalmente chove pouco. “Naquele ano houve uma estiagem violenta, mas aconteceu nos meses em que normalmente já chove menos, por volta de abril a outubro. Foi diferente do ano passado, que não choveu nada na época que deveria chover, de novembro a março”, disse o especialista.
O pesquisador afirma que Geraldo Alckmin engana a população quando não decreta o racionamento. “Sua preocupação maior era a eleição. Ele diz que não existe previsão de haver um racionamento sistêmico, mas há mais de seis meses vivemos outra forma de racionamento, não planejado, totalmente aleatório e que tira mais água dos bairros periféricos e menos dos bairros centrais. É uma mentira dizer que eles só reduzem a pressão, porque tem locais que nem válvula de registro existe para controlar, então eles estão é cortando a água mesmo”, finaliza.

por MURILO CARNELOSSO