Movimento negro promove ações para discutir relações raciais na Universidade

Iniciativas da Ocupação Preta em diversas unidades colocam em evidência o debate (in)existente sobre cotas e reservas de vagas na USP, reivindicando atenção ao tema

Uma discussão entre militantes negros e estudantes da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (veja coluna Opinião, na p. 16), na noite de 16 de março, ganhou publicidade fora dos muros da Universidade depois que um dos estudantes postou no YouTube o vídeo do conflito (que pode ser assistido no link bit.ly/1CEkLEi). O grupo que realizou a intervenção em sala de aula, motivo do embate, se chama Ocupação Preta.
Embora este único episódio tenha ganhado notoriedade pelo grau de tensão da discussão, eles vêm promovendo uma série de ações em faculdades da USP nas últimas semanas, as quais, segundo eles, “pretendem discutir o negro e as relações raciais na Universidade de São Paulo, as estruturas de poder nesta instituição e, especialmente, as cotas e reservas de vagas para negros”. De acordo com seu manifesto (veja box ao lado), o movimento é composto por negros e negras, estudantes da USP ou não, que lutam para denunciar as dificuldades e impedimentos que a população negra enfrenta ao tentar entrar nas universidades, e mesmo, quando conseguem, dentro delas.

Filtro social e racial Para os militantes da Ocupação Preta, o vestibular constitui um filtro social e racial de ingresso na universidade: “O vestibular seleciona as pessoas que mais investiram financeiramente na sua educação, e não os mais esforçados, como se imagina.” Este discurso, oposto ao meritocrático (para o qual todos os candidatos teriam oportunidades iguais e dependeriam apenas de seu esforço e capacidade para passar), se baseia na constatação de que os candidatos que estudaram em escolas melhores na preparação para o vestibular, assim como em bons cursinhos, têm vantagem sobre os candidatos que não tiveram condições para tal – já que estas escolas são caras e tradicionalmente frequentadas por jovens de famílias abastadas.
Esta discrepância se estende também ao âmbito racial, na medida em que a população preta e parda brasileira vive em condições materiais inferiores às da população branca. De acordo com o último Censo realizado pelo IBGE (2010), no Brasil, a renda média mensal da população branca do país é de pouco mais de 1.500 reais, contra cerca de 830 reais – quase metade – da população preta e parda.
Mas não se trata de uma simples questão de rendas desiguais. Para o grupo, este cenário é produto de um longo e complexo processo de exploração e opressão dos negros e negras no Brasil, que deixou e vem deixando como legado uma sociedade permeada pelo racismo. “Vivemos num país em que o racismo está profundamente enraizado, demarcando espaços para cada cor.” Para eles, negros e brancos “não têm as mesmas oportunidades nas universidades, da mesma forma que negros e brancos não têm as mesmas oportunidades de trabalho e condição social”.

Universidades brancas A demarcação de espaços para cada cor é bastante nítida quando se olha para a USP: as salas de aula são ocupadas majoritariamente por estudantes e professores brancos, e os cargos operacionais, como de faxineiro e segurança, por negros. Quem frequenta a Universidade percebe, no dia a dia, a segregação existente.
De acordo com o Censo da Educação Superior de 2013, nas universidades públicas e particulares em âmbito nacional, de todos os estudantes matriculados em 2013, apenas 3% eram pretos, contra 25% brancos. Somando pretos e pardos, tem-se 15% do total, em uma população de maioria preta e parda no País.
Outros indicadores apontam para a marginalização dos negros no ambiente universitário. O cursinho popular do Núcleo de Consciência Negra (NCN-USP), que funciona desde 1994 e recebe jovens carentes (maioria de negros e pardos), conseguiu aprovar nos vestibulares de 2014 e 2015, somados, apenas 35 candidatos em universidades públicas (17 na USP), de um total de 320 alunos do cursinho.
O Cursinho da FEA, também popular, funciona desde 2000 e seleciona seus alunos (480 por ano) pela renda. No vestibular de 2014 o Cursinho aprovou quase 100 alunos, 35 deles negros (e apenas 14 especificamente na USP). Mesmo levando em conta os muitos outros cursinhos populares em atividade no país desde os anos 1990, que trabalham para ampliar as oportunidades de ingresso dos estudantes pobres e negros nas universidades, é pouco para enfrentar um problema estrutural, com fortes raízes históricas.

Cotas raciais Para combater o sistema excludente de seleção das universidades, a grande luta travada pelo movimento negro, inclusive na USP, é por cotas raciais. Nos últimos anos têm sido implementadas, de diferentes formas, ações afirmativas em diversas universidades brasileiras. Nas federais, por exemplo, metade de todas as vagas são reservadas para estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas, e, destas, uma parte é reservada para candidatos pretos, pardos e indígenas. O cálculo é feito levando em conta a composição racial da população do estado em que a universidade está localizada.
Atualmente, na USP, estudantes que tenham cursado o ensino médio integralmente em escola pública podem se inscrever no programa de inclusão (INCLUSP) quando forem prestar o vestibular da FUVEST e receber um acréscimo de 12% em sua nota da primeira fase, bem como na pontuação final. Os que concluíram o ensino médio e também o fundamental na rede pública recebem 15%, e os que se inscreverem ainda no segundo ano do ensino médio podem acumular 20% através do Programa de Avaliação Seriada da USP (PASUSP). Quem se enquadrar em uma dessas categorias e, além disso, se declarar preto, pardo ou indígena recebe um bônus extra de 5%. Esta é a iniciativa da universidade no âmbito da inclusão.
A discussão sobre os termos em que as cotas devem ser implantadas em cada universidade é ampla, e deveria ser feita com participação da sociedade, especialmente da população negra, maior interessada e envolvida. Visto que a reserva de vagas é apenas um mecanismo de combate ao racismo, algo que extrapola em muito os limites da universidade, dificilmente se encontrará uma fórmula que se adeque ao problema em toda a sua complexidade. Mas, na USP, este debate precisa crescer, sobretudo nas instâncias administrativas.

Você é igual a mim? Um dos obstáculos apontados pela Ocupação Preta à luta pela verdadeira democratização da Universidade é a negação das instâncias oficiais em dialogar com o movimento que luta por cotas e discutir a elitização e o racismo institucional que existem no vestibular. Para eles, trata-se da negação da própria realidade da USP. O discurso meritocrático e da “democracia racial” brasileira, ao fingir que o racismo e a desigualdade entre negros e brancos na sociedade (e no acesso à universidade) não existem, roubam a voz dos marginalizados que tentam gritar contra sua marginalização.
Em certo momento da discussão mencionada no início desta matéria, o estudante que filma o debate justifica sua posição contra cotas e mecanismos de inclusão do povo negro nas universidades se dirigindo a um militante da Ocupação: “Você é igual a mim.” Recebe, em seguida, a resposta de que não, negros e brancos não são iguais e não ocupam papéis iguais na sociedade.
Para o grupo, “ao contrário de países como África do Sul e Estados Unidos, onde vimos um racismo totalmente às claras ainda no século 20, no Brasil formou-se um racismo naturalizado, escondido, onde acredita-se que a miscigenação teria trazido direitos iguais entre as raças, criando, assim, o mito da democracia racial.
Segundo eles, esse “processo de brandura silenciou o histórico do povo negro de resistência, responsável por revoltas, criação de quilombos e permanência de toda uma cultura popular”. “Este mesmo silenciamento continua ainda hoje”, eles concluem, “mantido por instituições de grande prestígio como a universidade quando se nega a dialogar com os movimentos negros e discutir a necessidade de cotas raciais”.
Porém, o movimento resiste. No dia 7 deste mês, durante reunião do Conselho Universitário (órgão deliberativo máximo da USP), a Ocupação Preta esteve presente e pressionou o Conselho para poder entrar e defender as cotas raciais na reunião, encerrada de súbito pelo reitor. Apesar disso, as ações do grupo deverão seguir por todo o campus, refletindo a luta do povo negro por acesso a um espaço reservado aos brancos.

MANIFESTO DA OCUPAÇÃO PRETA
Viemos, por meio deste, reivindicar o direito de nos apresentar e dizer quem somos, figurando, desta forma, um espaço ideológico que, de fato, pretendemos ocupar a partir do debate politizado que propusemos com essa ocupação. Assim, nós, a “Ocupação Preta”, nos designamos um movimento que surge a partir de um conjunto de ações que pretendem discutir o negro e as relações raciais na Universidade de São Paulo, as estruturas de poder nessa instituição e, especialmente, as cotas e reserva de vagas para negros – tal qual a resistência à adoção dessa medida e ao debate acerca dela por parte das diversas instâncias e contingentes que compõem a USP.
A Ocupação Preta é composta por um grupo de pessoas negras que estão dentro dessa universidade, mas também fora dela: nos unifica enquanto sujeitos políticos negros a necessidade premente de denúncia das dificuldades e impossibilidades a que está submetido todo o nosso povo desejante de cursar o nível superior e, não obstante, o que já está ali dentro, porém subjugado diária e contundentemente à logica racista sobre a qual a USP se erige. Nossas ações, sistematicamente ~radicalizadas~, não burocratizadas e não protocolares partem do pressuposto de que o debate deve ser feito em todo espaço – tal se dá a vivência de racismo –, diante do que a universidade não pode se isentar, como vem fazendo. Partem também do entendimento de que nós devemos ser os sujeitos e não só objetos desse debate, cabendo a nós conduzir as diretrizes e os marcos em que ele se dá.
Afirmamo-nos assim como grupo forte, solidário e aguerrido, favorável ao conjunto de ações propostas até o momento, as quais vêm atendendo ao seu propósito, demonstrando quão exitoso o movimento já é.
Nos utilizamos ainda desse espaço para repudiar toda crítica e ação truculentas contra o movimento, entendidas por nós como tentativas de desmobilização, desarticulação e deslegitimação de nossas lutas a partir da disseminação do medo e da ameaça. Enviesar o debate e tirar do foco as cotas e o negro por meio de atitudes despolitizadas e intimidatórias não nos silenciará. Qualquer tentativa de personificar o movimento e combatê-lo a partir da exposição de um se seus integrantes terá como resposta a ação coletiva e articulada do grupo, pois assim nos reivindicamos e assim tem se dado nosso enfrentamento. Asseguramos nosso compromisso com o grupo e com cada um de seus membros, assim como o seguimento das ações a que nos propusemos.
Preocupados em romper com os mecanismos racistas vigentes que impedem que a pauta seja inserida com legitimidade e radicalidade, nos despedimos certos de que grande vitória já aconteceu: abalamos as estruturas, rachamos alguns alicerces. São os primeiros passos necessários a construção de uma universidade democrática, atenta às demandas sociais e negra, tal qual queremos. Saudações de luta!

 

por FERNANDO MARGARIAN DE FREITAS