Mulher vira homem em peça de Montaigne

Baseada na fábula do filósofo, peça marca reabertura do Teatro da USP após período de reforma
(Fotos: Cacá Bernardes)

A cena é bem simples: um casal clichê e heterossexual, composto por marido e mulher, conversa na sala de estar antes da hora de dormir. O marido mostra-se indignado com uma passagem contada por seu professor naquele dia: a história de uma garota francesa chamada Maria, que cuidava de alguns porcos. Correndo atrás deles, ela se depara com um grande buraco e resolve saltá-lo. Porém, suas pernas se abrem demais e seu esforço é tanto que um pênis descola-se de seu útero. Maria agora é Germain. A esposa, indignada com tal fábula, responde ao marido que tudo não passa de uma invenção medieval para que as meninas se mantivessem comportadas. Mal sabe ela o que irá lhe acontecer, ao saltar de uma grande poça d’água ao voltar do trabalho no dia seguinte.
A pequena fábula contada por Michel de Montaigne no Ensaio XXI, “Da Força da Imaginação”, ganha vida na adaptação da Cia. Livre “Maria que virou Jonas ou a Força da Imaginação”. Em cartaz no Teatro da USP (TUSP). O espetáculo é apresentado por dois atores, Edgar Castro e Lúcia Romano, que podem interpretar tanto o papel convencional de marido e mulher respectivamente, como ao contrário: tudo depende de que cartas serão sorteadas no começo da peça, por uma pessoa da platéia. Ou seja, a partir do momento em que entram em cena, não sabem qual papel interpretarão: “Durante muito tempo trabalhamos no conceito geral do espetáculo e combinamos que eu faria a mulher e o Edgar faria o homem. Porém, começamos a pensar que a grande questão para a platéia e para nós seria como os lugares da mulher e do homem não são lugares tão estáveis ou tão naturais quanto a gente costuma pensar. E se é assim na vida, também é assim no teatro”, explica Lúcia.
Com apenas três meses de ensaio para a peça, Lúcia e Edgar decoraram as falas e ensaiaram para interpretar os dois personagens. “Foi muito puxado, decorar as duas personagens foi uma loucura. E também porque não se trata apenas de decorar, são duas peças diferentes. O Edgar fazendo a mulher é de um jeito, eu fazendo a mulher é de outro jeito. São outras marcas, é como se eu estivesse vendo um duplo de mim mesma, mas reagindo de outra maneira. E hoje, quando sorteamos essa possibilidade de fazer uma personagem ou a outra, sabemos que estamos nos abrindo para um jogo que, no tempo presente da peça, atualiza todas as questões que o texto traz como plano do conteúdo, transbordando no plano da encenação e da interpretação”, conta Lúcia.
O espetáculo aborda o tema da identidade de gênero diretamente: a esposa ganha um pênis ao saltar uma poça d’água, e conforme os dias vão passando ela sofre outras mudanças corporais: seus seios começam a diminuir, barba e pelos começam a nascer. No começo, ela sente vergonha de seu próprio corpo, mas com o desenrolar da peça ela passa a comportar-se como um homem homossexual. Portanto, por mais que seu físico tenha mudado, sua atração sexual não mudou. O marido, até então metódico e paciente ao lidar com as transformações da esposa, também descobre um novo universo ao relacionar-se com um homem.
A homofobia e o machismo também são tratadas durante o espetáculo. Através de músicas e constatações, as personagens expõem a situação das meninas que tem que se comportar para não se transformarem em meninos e dos homossexuais que são frequentemente excluídos e hostilizados. “A questão do machismo e da homofobia estão ligadas ao que os teóricos de gênero chamam de ‘heteronormatividade’. Você considerar que o que é normal, ou seja, o que é certo e deve ser igual para todo mundo é que todos devem ser heterossexuais. Portanto quem nasce homem deve ter as relações com mulheres. Essa grande norma que rege a nossa sociedade traz prejuízos: quando as pessoas não estão alinhadas à norma, elas são excluídas ou corrigidas”, conta Lúcia.
A peça reinaugura o TUSP depois do período de reformas. Parte do ano de 2014 o edifício Rui Barbosa, onde está localizado o espaço cênico, passou por uma modernização. Contudo, programas de ação continuada como Circuito TUSP, Leituras Públicas e apresentação de espetáculos em espaços não convencionais na capital foram realizadas mediante parcerias firmadas, portanto a produção cultural não parou. O espetáculo fica em cartaz até dia 19 de abril, e é um prato cheio para quem gosta de entretenimento fora dos padrões “A peça é dramática, mas também tem um percurso épico, as coisas vão acontecendo em um tempo-espaço deslocado do que seria a vida banal. O teatro tem uma história de refletir as hierarquias de gênero que estão presentes na sociedade. Então pensamos que uma questão importante para tocarmos seria esse alinhamento de que alguém nasce mulher, se comporta como mulher, vai fazer personagens femininos… Esse continuum é poucas vezes transgredido. Então pensamos que se rolasse esse jogo, a platéia ia partilhar com a gente dessas perguntas: será que as normas de gênero não podem ser transgredidas? Será que elas são realmente tão naturais ou são demarcadas por um contexto histórico, político e ideológico?”, indaga Lúcia.

Maria que Virou Jonas ou A Força da Imaginação
De 26/03 a 19/04 de 2015
Quinta a Sábado às 21h | e Domingo às 19h
Não recomendado para menores de 16 anos
Preços: R$ 20,00 (Inteira) e R$ 10,00 (Meia)
Entrada franca
Rua Maria Antônia, 294, Consolação – São Paulo, SP – Teatro da USP

 

por MARIANA MIRANDA