100 anos do Genocídio Armênio

Centenário do “massacre” foi lembrado ao redor do mundo, embora o episódio ainda enfrente tabus dentro da própria Armênia
(Arte: Marina Yukawa)

“Entre 1915 e 1917 os turcos exterminaram mais de um milhão de armênios. Quem fala sobre isso hoje?” Essas palavras foram ditas por Adolf Hitler em um discurso proferido em 1939, pouco antes da invasão da Polônia. Pouco depois, em moldes semelhantes ao que foi feito pelos turcos contra os armênios, os nazistas organizariam o que seria conhecido como holocausto, o extermínio em massa dos judeus. É muito significativo que o próprio Hitler tenha usado o caso armênio como exemplo para demonstrar como a humanidade pode se esquecer facilmente de seu passado. Em 1939, os nazistas ainda podiam ter confiança que da mesma forma que os culpados pelo genocídio armênio foram esquecidos pelo mundo, eles também poderiam muito bem ser “perdoados” por praticar atrocidades semelhantes contra os judeus.

O caso do genocídio armênio é emblemático. Diferente da Alemanha, a Turquia ainda não admite que tenha sido cometido um genocídio. A negação se tornou política do Estado e hoje na Turquia os livros didáticos não explicam o que ocorreu e existe até um artigo no código penal do país que prevê penas para quem insultar “a qualidade de ser turco”. Essa lei já foi utilizada, por exemplo, para processar escritores proeminentes como os ganhadores do Nobel, Orhan Pamuk e Hrant Dink, que abordaram a questão do genocídio em público. “O argumento deles é que foi uma guerra, pessoas morrem em guerras. Morreram uns armênios, mas morreram turcos, albaneses, gregos também, não houve genocídio. O que é mentira, porque foi uma limpeza étnica intencional, uma barbárie inexplicável a nível de estado do governo, planejada minuciosamente”, explica a professora do departamento de línguas orientais da FFLCH, Lusine Yeghiazaryan.

Questões em Aberto

A questão permanece como uma ferida ainda aberta. Nem todos os países do mundo reconhecem o genocídio, principalmente por questões políticas. “O genocídio é um fato histórico, o seu reconhecimento é político”, explicou a professora, “Falar genocídio é comprar briga com a Turquia, e a Turquia é um aliado forte de Israel, dos Estados Unidos, eles têm bases militares lá, existem interesses geopolíticos na região”, acrescentou. Nesse sentido, o pronunciamento do Papa Francisco, que em uma missa realizada no Vaticano em abril desse ano falou abertamente sobre o genocídio do povo armênio ter sido a primeira grande tragédia do século XX, foi de grande importância para causa, pois trouxe novamente os olhos do mundo para o assunto. “Criou-se essa avalanche, o que os turcos chamaram de “tsunami armênio”, porque entrou em destaque em todos os grandes veículos”, disse a professora. Como previsto, o discurso do pontífice irritou as autoridades turcas, que classificaram o pronunciamento como “calúnia”, além de “infundado e distante da realidade histórica”, como argumentou o ministro turco das Relações Exteriores, Mevlut Cavusoglu.

O Papel da Turquia

As razões para ferrenha negação da Turquia são muitas. Primeiro existe uma preocupação territorial, pois 25% do atual território turco eram terras que pertenciam historicamente à Armênia. Além disso, existe também a questão econômica, já que as bases da economia turca foram construídas em cima das propriedades e riquezas que os armênios foram obrigados a abandonar durante a 1˚ Guerra Mundial. A questão ainda se estende para o âmbito cultural, pois grande parte do patrimônio histórico armênio foi destruído durante esse processo, “As perdas culturais são enormes. Você tem fotos de uma Igreja Armênia do séc. X sendo usada como estábulo, em ruínas. É muito complexo”, afirma Lusine. E somando-se a tudo isso, uma questão um pouco mais subjetiva diz respeito à imagem do povo turco perante o mundo, “Uma nação inteira vai aparecer como assassina você querendo isso ou não. Os alemães até hoje têm o complexo de mostrar ao mundo que eles não foram aquilo lá. Isso implica em muitas coisas, geopolítica, territórios, indenização”, explicou a professora.

O Papel do Brasil

Diferente de outros países da America Latina como a Argentina e o Uruguai, o Brasil ainda hoje não reconheceu o genocídio armênio a nível federal. “Até agora existe uma rejeição à ideia, não sei se isso se deve ao fato do Brasil não querer se envolver em um conflito que é territorialmente distante. Também porque o Brasil tem interesses econômicos com a Turquia, mas pelo papel do Brasil como uma das potências do futuro, seu destaque na América Latina, seu papel na defesa dos direitos humanos, isso seria importante”, afirma Yeghiazaryan.

100 Anos de Luta

O centenário do genocídio armênio ocorreu no dia 24 de abril. Mais do que nunca vivemos em um mundo marcado pela intolerância étnica e religiosa, que se manifesta tanto em países desenvolvidos quanto no chamado terceiro mundo. Basta olhar para a forma que Israel trata da questão Palestina ou para os massacres dos cristãos pelo Estado Islâmico. Mesmo tendo acontecido há tanto tempo, as marcas do genocídio ainda são visíveis e fazem parte do cotidiano de gerações de armênios. “Faz parte das nossas vidas. Se eu falo para um armênio, ele sabe do genocídio. É uma coisa que não precisa de registros, não precisa de arquivos. Você acredita num mundo onde a memória coletiva, um país inteiro queira sofrer? É muito bárbaro imaginar isso. Como assim? Eu quero sofrer? Ouvir como foram mortos os meus antepassados? Dá arrepio”.

Por Isabelle Almeida