Índios do Jaraguá correm risco de perder parte de suas terras para ex-político

Reintegração de posse movida por Antônio Tito Costa foi suspensa provisoriamente pelo STF às vésperas

Os índios guarani da Grande São Paulo correm o risco de perder uma das sete áreas que possuem na cidade, a Aldeia Itakupe, localizada no Pico do Jaraguá. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) havia marcado a reintegração de posse em favor do proprietário formal da área, o ex-deputado federal e ex-prefeito de São Bernardo, Antônio Tito Costa (PMDB) para o fim de maio. No entanto, na última sexta-feira (15/5), o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, suspendeu provisoriamente a medida.
A terra reivindicada tem 72 hectares, e fica atrás da montanha. A reportagem do Jornal do Campus visitou a aldeia, no sábado (16/5). Há cerca de cinco pequenas casas rústicas, sem móveis como sofás e camas. O banheiro fica no centro do espaço habitado. Perto dele, há uma espécie de área de serviço, com uma banheira, um tanque de lavar roupas e diversas bacias com calças e camisetas no chão – tudo ao ar livre.
Os meninos Adilson, 13 anos, e Luan, 10, fizeram questão de promover um “tour” para mostrar a terra. Visivelmente menores do que garotos de suas respectivas idades, os guaranis apontaram a horta da tribo, onde cultivam batata, mandioca e milho para seu sustento, que é complementado pelas galinhas que criam. Depois disso, apresentaram a casa de reza, um estabelecimento de madeira e palha onde, diariamente, são promovidas orações.
Essa é a parte inicialmente visível da aldeia. Mas há muito mais. Seguindo a extensa trilha dos meninos pela mata, descobre-se um paredão e uma câmara de pedra, que teriam sido construídos pelos escravos, de acordo com os guaranis. E, no final do caminho, algo essencial para os índios: uma nascente de água pura, a única da região, segundo o líder guarani David Martim.
Geni Vidal Lima, em conjunto com sua nora, Leidiane Rodrigues, produz colares, pulseiras e brincos indígenas. Ela vende o artesanato a quem visita Itakupe. Quando precisa descer o morro para comprar algo ou ir ao médico, Geni aproveita para oferecer as bijouterias por onde passa.

Conflito judicial

Itakupe, Teko Pyau e Teko Ytu, que ficam no lado oposto do pico, compõem a Terra Indígena Jaraguá. Esta última é a única oficialmente demarcada – com 1,7 hectare, é a menor área de índios já reconhecida no Brasil. Conforme informações da Funai, cerca de 600 guaranis vivem na região.
Embora os guaranis ocupem a região apenas desde 1950, estudos históricos e culturais da entidade constataram que o terreno é composto por terras ligadas ao antigo aldeamento de Barueri, do século XVII. Com base nisso, a Funai recomendou que a Terra Indígena Jaraguá fosse ampliada para 532 hectares, englobando Itakupe e um pedaço do Parque Estadual do Jaraguá. O documento está desde 2013 aguardando parecer do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Se aprovado, ele segue para a presidente Dilma Rousseff, que pode homologá-lo ou rejeitá-lo.
Enquanto o procedimento se arrasta pelo Executivo Federal, OLIVEIRAos guaranis são ameaçados de perder sua terra há 10 anos. Alegando que a família de sua mulher havia adquirido a propriedade em 1947, Tito Costa moveu ação em 2005 reivindicando a área. No processo, ele alegou que indígenas nunca haviam habitado a região. Na ocasião, a Justiça considerou que os moradores de Itakupe não eram índios, e sim sem-terra, e, por isso, ordenou a reintegração de posse em favor do ex-deputado.
Depois disso, Tito Costa colocou pessoas no local para garantirem a posse em seu favor. Segundo David Martim, eram moradores de favelas próximas que desmatavam muito e eram violentos com os guaranis. Mas em 2014, uma ordem judicial determinou que eles saíssem da aldeia, que foi novamente ocupada pelos índios.
Porém, em março de 2015, a 10ª Vara Federal de São Paulo voltou a impor que os índios deixassem Itakupe. A Funai recorreu ao TRF-3, mas a decisão foi confirmada. Insatisfeita, a entidade levou a questão ao STF, onde seu pedido foi acatado por ora. No ato, Lewandowski recomendou que o juízo de primeira instância “promova uma tentativa de conciliação entre as partes ou, então, justifique eventual impossibilidade de levá-la a efeito”. Ou seja, se os índios e Tito Costa não chegarem a um acordo, o juiz pode reafirmar sua posição de atribuir o domínio da área ao ex-político. Somente após isso o Supremo voltará a analisar a questão, dessa vez em caráter definitivo.
Na visão de Martim, o ministro da Justiça está sendo omisso ao não dar prioridade para a demarcação da área em favor dos indígenas. Segundo ele, a demora do governo em resolver a questão está alimentando a especulação imobiliária no Jaraguá, gerando desmatamento e prejudicando os guaranis que vivem na região e dependem da água e do plantio de Itakupe.
O doutor pela Faculdade de Direito da USP Gustavo Nicolau explica que, no ordenamento jurídico brasileiro, o direito de propriedade não é absoluto, e tem que ser compatibilizado com o interesse público. “Essa relação tem que ser muito sopesada. Será que nossa cultura, tradição e história não seriam mais importantes do que a propriedade do Tito Costa? Em análise superficial, me parece que sim. Melhor proteger uma das últimas aldeias de São Paulo do que ter mais uma propriedade”, opina.
Já a professora de antropologia da PUC-SP Lúcia Rangel destaca que, para os índios, uma área não é apenas um espaço de terra, e sim um local que tem importância simbólica e espiritual para eles, e de onde tiram seu sustento. Sem ela, eles viram seminômades, e acabam caindo na criminalidade, diz. Lúcia inclusive defende que os guaranis sejam nomeados guardiões do Pico do Jaraguá.

Mais direitos

A Constituição Federal de 1988 trouxe uma mudança “filosófica” em relação aos índios, aponta Nicolau. “Com isso, a sociedade passou a reconhecer a dívida histórica que temos com eles por termos tomado de assalto suas terras”, explica.
Para pagar esse débito, foram incluídas diversas disposições no texto constitucional protegendo os indígenas e suas terras. Além disso, o Ministério Público passou a ter competência para proteger os interesses deles.
Em 2009, ao confirmar a homologação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), o STF ampliou os direitos dos índios. No julgamento, os ministros estabeleceram que terras caracterizadas como indígenas não podem ter sua posse ou propriedade reivindicada. Dessa forma, não é possível que alguém more em uma aldeia por mais de 15 anos e depois reivindique o título da área por usucapião.
As leis são boas, mas não bastam, ressalta Lúcia: “O problema é que ninguém respeita a Constituição”. De acordo com ela, em nome do direito de propriedade, as elites “impõem suas vontades aos três Poderes e à população”, passando a ideia de que índios são “vagabundos, ladrões, e que têm terra demais”.
A antropóloga aponta que o governo federal concluiu apenas 50% das demarcações de terras indígenas. E o prazo para concluir esse processo era de cinco anos após a promulgação da Constituição – ou seja, venceu em 1993. Lúcia ainda afirmou que nenhum dos presidentes depois da redemocratização deu atenção contínua ao tema, preferindo ações pontuais que lhes conferissem benefícios políticos.

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(Foto: Sérgio de Oliveira)
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(Foto: Sérgio de Oliveira)
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(Foto: Sérgio de Oliveira)

Por Sérgio de Oliveira