Machismo no esporte universitário

Debate sobre a presença de mulheres no esporte atravessa gerações e ganha novo destaque com últimos casos machistas em campeonatos que envolveram atletas da USP

Devido aos constantes casos de opressão à mulher ocorridos no ambiente universitário, as unidades da USP têm se movimentado para discutir a importância do combate ao machismo em todos os setores. Com relação ao ambiente esportivo, a organização é ainda maior.

O Núcleo de Mulheres de Relações Internacionais (RI) promoveu um evento no último dia 22 de abril para debater como o machismo se manifesta dentro dos jogos universitários e, mais especificamente, nas partidas. Três mulheres compuseram a mesa: Luíza Ribeiro, integrante do Coletivo Feminista Geni da Faculdade de Medicina (FMUSP), Heloísa Buarque de Holanda, professora do Departamento de Antropologia e ex-coordenadora do USP Diversidade, e Beatriz Lopez Roldão, diretora geral de esportes da Associação Atlética Acadêmica da Matemática (AAAMAT) e integrante do DiversIME.

Dentro do contexto dos jogos universitários, os acontecimentos de violência contra atletas e alunas podem ocorrer em diversos ambientes, seja dentro das quadras, na torcida e até nas festas. Para Beatriz, é muito comum ouvir agressões desse tipo vindo das arquibancadas: “A própria torcida e a bateria estão lá representando o time, mas cantando músicas que colocam o homem em superioridade, e acabam colocando as mulheres em uma posição inferior”.

Para Ricardo Alexino, professor da ECA-USP e atual coordenador do USP Diversidade, o machismo presente no esporte universitário é uma reprodução natural da sociedade fora dos muros da universidade. “O machismo dentro dos esportes universitários é reflexo do machismo em vários outros setores da sociedade, que tem como modelos paradigmáticos o patriarcado. Nas Copas do Mundo, por exemplo, o futebol feminino sequer aparece”, comenta.

A diferença, segundo Alexino, é que no contexto da universidade estas atitudes se chocam com o pensamento produzido dentro dela. “O ambiente universitário é composto por um grupo de pessoas muito restrito, e dessa forma tudo se intensifica. E dentro deste grupo, que constitui o pensamento da universidade, estas atitudes vão conflitar”, acredita o professor.

Os casos de machismo são muito recorrentes nas festas, que estão sempre muito ligadas ao esporte no meio universitário. Um dos acontecimentos mais recentes ocorreu em abril, durante a primeira edição da Copa Universitária Paulista (CUPA). “Nas festas a gente lida com muitos casos, como foi o exemplo da CUPA. As meninas não querem alguma coisa enquanto os caras ficam forçando, achando que as meninas têm interesse ou estão fazendo algum tipo de charme. A gente sabe de vários relatos de festas em que o IME participa”, relata Beatriz Roldão Lopes.

O professor Ricardo completa a análise, dizendo que todos os problemas presentes em qualquer festa universitária, como as calouradas, se repetem nos eventos esportivos, que são extensões dessas festas em sua visão. “Os eventos esportivos universitários no Brasil ainda se misturam com algo festivo. Ou seja, as bebidas alcoólicas e outras drogas ilícitas são presentes e o assédio também”, diz o pesquisador. “Na verdade, os eventos esportivos são como uma extensão das calouradas. Com isso, todos os valores das calouradas são enfatizados também nos jogos universitários. Se há problemas graves nas calouradas, com certeza existirão os mesmos problemas nos jogos universitários, pois a natureza dos dois é a diversão, muitas vezes machista”.

Segregação histórica

A dificuldade das mulheres em participar do espaço esportivo remonta à história do Brasil. Durante o período da ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945), entrou em vigor o decreto-lei 3.199, de 14 de abril de 1941. Em seu artigo 54, definia que “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”.

Este decreto permaneceu válido até agosto de 1965, quando foi regulamentado pelo Conselho Nacional de Desportos e ficou ainda pior. No artigo 2º da deliberação o CND definiu os esportes proibidos para mulheres. “Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo aquático, pólo, rugby, halterofilismo e baseball”, dizia o texto, que só foi revogado em 1979, há menos de 40 anos atrás.

Para Mariane Pisani, doutoranda em Antropologia na FFLCH e que pesquisa a situação das mulheres no futebol, eram três os principais critérios para excluir as mulheres do mundo esportivo. “O principal argumento era o médico, de que o corpo das mulheres não estava preparado para determinados esportes. Também havia o argumento religioso, que acreditava que as mulheres deveriam permanecer em casa e se prepararem para ser mães. E o próprio critério legal, já que havia leis que impediam esta prática esportiva”, analisa Pisani.

Esta visão permanece enraizada na sociedade brasileira até hoje, com esportes onde a participação feminina ainda é considerada tabu, inclusive entre as próprias mulheres, como acredita Ricardo Alexino. “Aquelas [mulheres] que se aventuram nesses outros esportes ‘destinados aos homens’ são logo taxadas de lésbicas ou de mulheres masculinizadas. Tais alcunhas são feitas principalmente por outras mulheres. Isso é um reforço do pensamento machista e excludente”, explica.

O reforço da mídia esportiva

Não é nada raro no jornalismo esportivo encontrar galerias de fotos com jogadoras e torcedoras musas, por exemplo. As mulheres no esporte sempre são vistas a partir de seu corpo, antes mesmo do próprio desempenho esportivo, acredita Alexino. “A mulher esportista quase sempre é valorizada pela superação de sua fragilidade e não pela sua força ou capacidade tácita. Quase sempre as matérias de jornalismo esportivo vão destacar a beleza da atleta como se isso pudesse ser relevante para o seu desempenho”, disse o professor.

Um exemplo citado por Ricardo é o da ginasta Flávia Saraiva, de apenas 15 anos e 1,33m de altura, que conquistou duas medalhas na Copa do Mundo de Ginástica no último final de semana. Para ele “todas as matérias jornalísticas enfatizavam a sua altura, como se isso fosse algo extraordinário nesse tipo de esporte. Ou seja, a mulher é vista sempre a partir do corpo, de forma sensual ou não”.

Combate ao machismo

Após os acontecimentos da CUPA, a Atlética do IME vem buscando formas de combater estes casos na universidade. Beatriz Roldão conta os preparativos para o Integramix, evento da qual sua faculdade participa, que vão desde a preparação das pessoas que compõem a gestão para estes casos até a retirada de músicas antes tocadas pela sua bateria. “Esse ano a gente pediu para a bateria tirar duas músicas que eles cantavam sempre e eles até foram bem compreensivos. Em um evento esportivo é muito propícia a ocorrência desse tipo de coisa [atitudes machistas], então a gente tenta ao máximo evitar e não tornar isso uma coisa comum”, conta a diretora geral de esportes.

Para Mariane Pisani, o meio universitário acaba reproduzindo o discurso de fora da universidade e uma das várias formas de tentar combater essa situação seria com as atléticas fazendo um levantamento sobre a história de suas modalidades. “No futebol durante a Segunda Guerra, enquanto os homens foram para a guerra, as mulheres organizaram competições de futebol para arrecadar recursos”, exemplificou a pesquisadora.

A educação e o debate cada vez mais intenso são a melhor forma de combate ao machismo e outras formas de opressão para Ricardo Alexino, que não acredita que o esporte sozinho consiga mudar este panorama. “Para reverter essa situação, penso que se torna necessário um maior número de disciplinas que abordem os direitos humanos e a diversidade. Tais temáticas devem ser transversais em todos os cursos. Bem como disciplinas que falam de questões legais e criminais, envolvendo assédio, bullying, estupros, racismo, homofobia e outras formas de violência”. conclui o professor.

“Lá é uma terra que me sinto oprimida”

Atletas da FFLCH relatam casos de machismo durante a CUPA

No último feriado de Tiradentes (18/04 a 21/04), ocorreu a primeira edição da Copa Universitária Paulista (CUPA), na cidade de São Carlos, no interior de São Paulo. A CUPA é uma competição poliesportiva que envolve as atléticas da EEFE, FFLCH, CAASO, UNESP RIO CLARO, EEL (USP Lorena) e LEU (Engenharias Unicamp). O campeonato surgiu com o objetivo de incentivar a prática do esporte universitário e de integrar os estudantes de diferentes universidades.

No entanto, esta primeira edição foi marcada por vários casos de opressão, sejam eles de origem machista, racista ou homofóbica. Foram registradas inúmeras agressões verbais e físicas por parte dos integrantes do CAASO contra alunas atletas da FFLCH.

Durante uma festa que ocorreu de dia, a Atleta 1, da FFLCH, sentiu alguém mordendo pela segunda vez sua perna. “Nisso eu não aguentei, o empurrei e disse ‘qual é a sua, por que você está fazendo isso?’. Ele me respondeu que tinha sido obrigado”. O acontecimento se tratava de um trote em que os bixos teriam que obedecer aos veteranos. “Me disseram que é normal em trote os caras ficarem mordendo as meninas ou fazer levantamento delas, e se os bixos não fazem isso, os veteranos batem neles”, afirmou a Atleta 2.

A Atleta 1 continuou indo para cima do estudante, até que outro veio com o braço diretamente no seu pescoço, gritando e a ofendendo. “Ele dizia ‘você não é bem-vinda aqui, pára que você já brigou o suficiente. Aqui não funciona desse jeito, não é o campus da Cidade Universitária e você não pode fazer isso aqui’. Ou seja, ele pode mandar um bixo dele me morder, mas eu tenho que ficar quieta?”, relata a atleta. Após a confusão, alguns amigos da estudante interviram e começaram a discutir com os caras.

“É uma coisa que eles dizem ser cultural, mas se essa é a cultura deles, nós temos que enfrentar isso. Porque não dá mais para mulher ficar apanhando em festa, levando mordida ou ser obrigada a beijar alguém”, atesta a Atleta 1, que destaca a importância das mulheres relatarem e denunciarem casos como esse. “Nós fomos lá e passamos quatro dias, mas e as meninas que estão lá todos os dias, o que elas passam?”, questiona.

As estudantes foram conversar com os seguranças da festa para pedir um eventual banimento dos agressores, mas eles responderam insinuando que elas estavam alteradas. “O posicionamento que nós encontramos foi o da organização da festa, que era terceirizada, aceitando e acatando esse tipo de coisa”, relata a Atleta 1.

Desde o começo das reuniões da CUPA, as atléticas participantes discutiram colocar dentro do estatuto do torneio formas de punições financeira contra machismo, racismo e LGBTfobia. No entanto, encontraram resistência pelas Atléticas CAASO e LEU (Unicamp), que foram contra a punição para estes casos.

Por André Meirelles e Murilo Carnelosso