Cristãos contrariam princípios de Jesus

Preconceito contra comunidade LGBT e apoio à redução da maioridade penal por parte de católicos e evangélicos não condizem com mandamentos de amor ao próximo e de perdão

Em 1º junho, a rede de cosméticos O Boticário veiculou um comercial para o Dia dos Namorados que apresentava não só casais de heterossexuais, mas também de gays e lésbicas, ao som de “Toda Forma de Amor”, de Lulu Santos. A reação à campanha não tardou: no dia seguinte, o líder da igreja evangélica Assembleia de Deus, Silas Malafaia, convocou seus seguidores a boicotarem os produtos da marca, alegando “ter o direito de preservar macho e fêmea”, pois “somos a maioria”.

No domingo seguinte (7/6), uma transexual desfilou trajada de Jesus Cristo na cruz na 19ª Parada do Orgulho LGBT em São Paulo. Segundo ela, o objetivo do ato era “representar a agressão e a dor” que os não heterossexuais sofrem. Como o messias cristão, ela foi crucificada – mas pelos seguidores dele. Em nota oficial, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil em SP repudiou as “claras manifestações de desrespeito à consciência religiosa de nosso povo e ao símbolo da fé cristã”, e exigiu que o Poder Público defendesse o “direito agredido” deles.

Ilustração: Stella Bonici
Ilustração: Stella Bonici

Nesse meio tempo, o debate sobre a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos voltou a se intensificar devido ao assassinato do médico Jaime Gold no Rio de Janeiro, que teria sido cometido por dois menores de idade. A bancada evangélica do Congresso Nacional, que tem como representante extraoficial o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), apoia a mudança. A Proposta de Emenda Constitucional 171/1993, que institui a diminuição, não justifica a medida com base em dados estatísticos ou pesquisas. O argumento é puramente bíblico, baseado em passagens do profeta Ezequiel e dos reis Davi e Salomão que afirmam que todos devem se responsabilizar por seus atos.

Seguindo a via repressiva, deputados evangélicos e católicos subiram à tribuna da Câmara no dia 10 de junho para exigir a criação do crime hediondo de “Cristofobia”. Para justificar a tipificação de atos que “ferem a família” e a liberdade religiosa, os parlamentares mostraram fotos de condutas “profanas” de participantes da 19ª Parada do Orgulho LGBT paulistana, que teriam “zombado” e “ridicularizado” o sacrifício de Jesus. Ao término do discurso, os deputados rezaram o Pai Nosso com a anuência de Cunha.

Nesses casos, os cristãos vêm defendendo a marginalização de gays, lésbicas, bissexuais e transexuais, a criminalização de atos que usem símbolos religiosos e o aumento da repressão contra menores de idade. Católicos e evangélicos ganham cada vez mais espaço no debate político por suas posturas punitivas e discriminatórias.

O problema é que essa atitude contraria os ensinamentos de Jesus, os quais dizem seguir fielmente. Os mandamentos de amor ao próximo e de perdão são pilares do cristianismo. E essa ideia está clara na Bíblia.

Sobre o primeiro princípio, o livro sagrado diz, entre outros trechos, que “Esta é a mensagem que vocês ouviram desde o princípio, que nos amemos uns aos outros” (1 João: 3.11), e que “Amados, amemos uns aos outros, pois o amor procede de Deus. Aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1 João: 4: 7-8).

A respeito do segundo comando, o texto ensina, por exemplo, que “Então Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: ‘Senhor, quantas vezes deverei perdoar a meu irmão quando ele pecar contra mim? Até sete vezes?’ Jesus respondeu: ‘Eu digo a você: Não até sete, mas até setenta vezes sete’” (Mateus 18:21-22), e que “Não julguem e vocês não serão julgados. Não condenem e não serão condenados. Perdoem e serão perdoados” (Lucas 6:37).

Ao não reconhecer a possibilidade de pessoas do mesmo sexo terem relacionamentos afetivos, os cristãos não estão desobedecendo o mandamento de amar ao próximo? Ao defenderem o encarceramento de menores, e não sua internação em instituições que busquem a reabilitação, os cristãos não estão desrespeitando o princípio de perdoar seus irmãos? Parece evidente que sim.

Porém, se a redação da Bíblia não estiver clara o suficiente, católicos e evangélicos podem aprender com dois escritores clássicos da literatura: os russos Fiódor Dostoiévski e Liev Tolstói. Em “O Idiota”, Dostoiévski conta a história do príncipe Míchkin, um cristão epilético dotado de um humanismo irrefreável. Conforme a narrativa avança, ele conhece Nastácia Filíppovna, uma mulher vista pela sociedade como louca e degenerada. Mesmo não a amando de verdade, Míchkin – contra a opinião de seus conhecidos – a pede em casamento. A razão disso, ele explica, é que compreende o “grande inferno” de onde Nastácia saiu, e quer ajudá-la a ter uma vida digna, pois acredita que o amor ao próximo é o grande fundamento da vida.

Já em “Ressureição”, Tolstói conta a história de Nekhliúdov, um jovem da alta sociedade que engravida a criada Máslova e a abandona. Tempos depois, ele participa do júri que a condena a quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria por um caso mal esclarecido. Se sentindo culpado pelo destino dela, Nekhliúdov passa a visitá-la na prisão e a trabalhar para a revogação de sua pena. Nesse processo, ele conhece diversos presos, e percebe que são tão humanos quanto ele, e que cada um tem razões e circunstâncias que os levaram ao crime – isso quando não foram alvo de injustiças. Com isso, o jovem percebe que é preciso perdoar os que erraram, o que seria o único caminho para a salvação.

Mas se os cristãos não quiserem exemplos de fora de sua comunidade, podem mudar o foco de suas atenções. Uma liderança em que podem se inspirar é o Papa Francisco, que, em 2013, afirmou “Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?”. Outra opção é olhar para a Comunidade Athos, de Brasília, que acolhe evangélicos LGBT rejeitados por outras igrejas. Ou podem também se basear na Pastoral Carcerária, braço da Igreja Católica que não só se opõe à redução da maioridade penal como condena o encarceramento em massa.

Católicos e evangélicos tem bons exemplos para seguir, basta selecioná-los. O que eles não podem é aceitar o discurso de ódio propagado por Cunhas, Malafaias e Felicianos, totalmente contrário aos ensinamentos que dizem praticar.

Por Sérgio Oliveira