“Existe um machismo escancarado, mas não é dele que eu tenho medo”

Para Camila Achutti, uma das principais referências em tecnologia e empreendedorismo feminino, no dia a dia da área científica o machismo velado é ainda mais preocupante

Ainda que o desenvolvimento da tecnologia da informação tenha se apoiado nos esforços de mulheres como Ada Lovelace e Grace Hopper, a participação feminina na área ainda é tímida – de acordo com dados disponibilizados pela Fuvest, o índice de ingresso de mulheres no curso de Ciências da Computação, no IME, no ano de 2015, foi de cerca de 11% das 330 vagas.

Foto: Bruno Carvalho/Divulgação
Foto: Bruno Carvalho/Divulgação

Em seu primeiro dia no curso, em 2010, Camila Achutti se deu conta de que todos os seus colegas de sala eram homens e, neste momento, a representatividade feminina na tecnologia passou a ser uma de suas prioridades. Fundadora do blog Mulheres na Computação e embaixadora brasileira do Technovation Challenge, que promove a criação tecnológica e o empreendedorismo entre meninas, Camila, agora estudante de mestrado no IME-USP, se tornou uma das principais vozes nacionais no assunto, tendo recebido no último mês de maio o prêmio Student of Vision, do Instituto Anita Borg. Em entrevista ao Jornal do Campus, ela falou sobre a experiência de ser uma mulher em uma área tão restrita:

Jornal do Campus: Como surgiu seu interesse pelo mundo da tecnologia? E quando você começou a pensar a posição da mulher dentro dele?
Camila Achutti: Meu pai sempre trabalhou com tecnologia, e eu fui criada achando aquilo o máximo. E não tinha noção nenhuma de “coisas de menino” e “coisas de menina”. Prestei vestibular para Ciências da Computação, cheguei no primeiro dia de aula, que era dia 8 de março – na verdade, primeiro dia de aula para mim, que cheguei atrasada -, o pessoal já estava programando e tudo mais, e eu fiquei pensando “o que está acontecendo?”. Olhei ao redor pensando que precisava arrumar um caderno, e foi aí que me dei conta de que não tinha nenhuma menina. Fui para casa desesperada. A partir desse dia, a representatividade de mulheres dentro do campo de computação nunca mais deixou de ser uma preocupação minha. Em cada palavra, em cada discurso, eu pensava nisso e tentava encontrar uma maneira de mudar as coisas.

JC: Qual é a relação de poder criada pela desigualdade no domínio da ciência? E como as mulheres se prejudicam pela própria falta de representatividade no ramo?
CA: Eu vejo dois problemas bem grandes. Um é questão de matemática: tecnologia tem sido cada vez mais imprescindível para que possamos fazer qualquer coisa. Então nós precisamos de profissionais da área. Se eu excluo metade da população mundial dessa área, o que acontece? A conta não fecha. Nós não vamos ter profissionais o suficiente para inovar e ter a evolução científica que poderíamos ter. Fora que serão profissionais iguais, criados e construídos da mesma maneira, enquanto pessoas diferentes terão opiniões diferentes e poderão contribuir de maneira diferente.
E o segundo é que nós acabamos deixando de resolver alguns problemas que deveriam ser resolvidos. Enquanto o homem branco do Vale do Silício estiver resolvendo os problemas do mundo, quando é que vão resolver o problema da menina em Mumbai que é assediada no transporte público? Não vão. Pesquisas de câncer no colo do útero não são tão pessoais para um cientista quanto para uma cientista.

JC: Você escreve sobre o assunto em seu site, o Mulheres na Computação. Se comunicar sobre o tema foi importante na sua própria formação?
CA: Foi imprescindível. Um, porque eu descobri que não estava sozinha. O blog começou no primeiro dia de aula como uma tentativa de registrar tudo o que eu estava lendo. Eu comecei a ler desde teoria feminista até história da computação. Poder escrever e repartir isso do meu jeito, sem ter nenhuma regra, foi imprescindível para a minha formação. E a outra coisa foi esse senso de pertencer. Se eu estivesse dependendo de jornal, de rádio, seria totalmente diferente, mas a gente começou a criar uma comunidade em volta do blog alicerçada pelo “aqui é nosso espaço, aqui a gente pode ser quem a gente quiser!”.

JC: É comum entre pessoas que trabalham com tecnologia que parte de seus conhecimentos seja desenvolvida de maneira menos ortodoxa, com muita exploração feita por conta própria. Porém, muitos dos ambientes em que esse tipo de troca acontece são predominantemente masculinos. Como incluir e estimular meninas para que possam ter esse mesmo tipo de autonomia sobre o próprio conhecimento?
CA: O blog tem alguns artigos técnicos, principalmente lá no início. Eu entrei muito crua na faculdade, todo mundo já tinha feito técnico e eu não sabia nada. E quando eu ia ler sobre algum assunto, era sempre homem escrevendo, um texto superdifícil que não tinha como entender nada. Então eu comecei a digerir aquilo tudo e transformar em artigos mais “tranquilos”. E muita gente vinha agradecer falando “que legal, agora eu entendi, eu precisava disso como um primeiro passo para depois começar as contas”. Eu acho que ser uma voz feminina, para as meninas, era melhor. Então acho que todo mundo deveria buscar essas fontes alternativas, com critério claro.

JC: Como estimular?
CA: Acho que empoderando essas meninas e criando espaços mais tranquilos. Por exemplo, existem eventos técnicos específicos para mulheres, como o Grace Hopper, que é uma celebração das mulheres e onde quase todo mundo que apresenta é mulher. E você consegue ganhar muito, porque as mulheres têm coragem de apresentar para outras mulheres e vão ganhando confiança, e percebem “eu posso fazer isso onde eu quiser!”.

JC: As mulheres tiveram acesso bastante limitado à produção de conhecimento formal por muito tempo, sendo realmente integradas às universidades há pouco mais de 50 anos. Você acha que essa lacuna histórica tem, ainda hoje, influência na participação feminina na criação científica?
CA: Em 1971, 70% da primeira turma do IME-USP eram mulheres. Como é que de 1971 para 2013 eu acabei me formando sozinha? Eu acho que tem uma relação no todo, mas tem outras coisas, como a construção de gênero e o estereótipo da área – a mulher tem que ser fofinha e cuidar de todo mundo, e o cara é o estereótipo de programador, “faço tudo, trabalho de madrugada, não ligo para a minha aparência”. Então acho que existem outros quesitos que passam sim por essa falta de liberdade e esse machismo arraigado, mas não é só isso.

JC: Você está, atualmente, desenvolvendo um projeto de mestrado, o que pressupõe um tipo de produção mais fechado nos moldes acadêmicos. Existe diferença entre trabalhar com tecnologia no mercado e na universidade? E existe diferença entre ser mulher nos dois ambientes?
CA: Sim, muita diferença! E para as mulheres, mais ainda. Se você for olhar o quadro de professores, as mulheres têm uma representatividade muito maior do que no mercado, porque, a partir do momento em que a menina se forma, ela se sente muito confortável naquele ambiente universitário, porque já dominou aquele espaço. Quando você chega no mercado, você tem que provar todo dia que você não é uma carinha bonita, que você está rendendo, que está valendo cada centavo do seu salário – que é menor que o do homem na mesma posição -, então existe uma diferença grotesca, desde a tecnologia que é usada até o rendimento que você precisa ter.

Tem um relato de uma engenheira do Facebook que conta que entra no trabalho às 7h, porque deixa a filha na escola e vai direto trabalhar. Ela trabalha até meio-dia quase sozinha no escritório, porque todos os caras chegam depois. E ela sai às 18h para buscar a filha e os colegas ficam comentando “olha como ela tá desmotivada, olha como ela é ruim”, sendo que ela trabalhou tanto ou até mais, mas, naqueles moldes, ela não se encaixa.

JC: Recentemente, causou polêmica o caso de Tim Hunt, ganhador do Nobel de medicina, demitido da Universidade de Londres após inúmeras críticas a seus comentários sexistas feitos sobre o papel das mulheres na pesquisa científica. Ainda existe espaço para este machismo escancarado na tecnologia? Ele se manifesta de outras formas?
CA: Existe um machismo escancarado, mas eu tenho menos medo dele. O Tim Hunt, por exemplo, é tão escroto que vai sofrer retaliação, como o Satya Nadella [CEO da Microsoft] falando que é “karma bom” para as mulheres que elas ganhem menos. Os escancarados eu acho “ok”, porque o próprio bom senso já deixa claro, qualquer pessoa vai conseguir entender. Eu tenho mais medo dos velados, do pequeno comentário que vai tolhendo aquela menina. Existe o escancarado, mas ele não preocupa tanto quanto o do dia a dia, que é o comentário bobinho, que é você não receber a tarefa porque seu chefe não quer que você se envolva.

JC: Como é seu trabalho no Technovation Challenge? Como você chegou até lá e quais são os projetos desenvolvidos pela iniciativa aqui no Brasil?
CA: O Technovation chegou na minha vida em 2013, ele tem hoje seis anos, e foi muito joia. Eles me encontraram porque precisavam de mais gente aqui no Brasil, para ajudar a trazê-lo pra cá, e a gente tinha muita liberdade, porque como não existia nada a gente podia inventar do nosso jeito, com algumas regulações, claro, mas era meio “faz aí!”, então eu aprendi muito no processo.
É um desafio de empreendedorismo e programação só para meninas. Eu acho que o principal objetivo do Technovation aqui no Brasil é fazer com que as meninas saiam da zona de conforto e dar oportunidade para que elas conheçam tecnologia, independente da área que você for seguir – a gente sempre bate nessa tecla -, conhecer tecnologia daqui para frente e hoje é muito importante.

Por Laura Viana