Qual a relação entre a Universidade de São Paulo e a comunidade que a rodeia?

As universidades públicas exercem um papel fundamental de extensão; fizemos um panorama de como os campi da USP interferem na cultura, na economia e até no trânsito de suas regiões

Nascida de um processo político, a USP foi idealizada após a derrota de São Paulo na Revolução de 1932. Desde a sua criação na época, as relações sociais dentro da Universidade, sejam por parte da movimentação de alunos ou não, passaram a mostrar que podiam influenciar na sociedade. Hoje em dia, com grande parte das suas unidades concentradas no bairro do Butantã (“terra dura”, em uma das traduções do indígena), o campus Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira (CUASO) altera totalmente a lógica do bairro à sua volta, desde o transporte público, integração com a comunidade e até o preço dos imóveis.

 

(Foto: William Nunes)
(Foto: William Nunes)
Transporte público

O deslocamento na região da Cidade Universitária já foi muito mais difícil do que é hoje. Antes da Estação Butantã ter sido entregue, muitos estudantes e funcionários dependiam de uma baldeação entre a Estação Vila Madalena e a Estação Cidade Universitária. A ligação era feita através de uma perua chamada Ponte Orca. O serviço transportou um total de 19,8 milhões de pessoas desde 2007, até o fim de seu funcionamento, em 2011. “Na época era bem punk mesmo. Morava em Jundiaí e eu pegava quatro trens pra chegar na USP. Tinham épocas em que a fila era terrível. Você chegava a ficar uma hora esperando, porque você dependia das vans. Mas havia uma coisa bacana, que era uma relação muito solidária entre os alunos. Quem vinha da Ponte Orca encontrava alguém para entregar o bilhete da passagem ou deixava com o guardinha da portaria para poder reusá-lo”, conta Daniel Peres, ex-aluno da graduação. Com a implantação dos dois circulares dentro do campus e a entrega do Metrô Butantã, a comunidade universitária se beneficiou. Hoje, apesar dos circulares ainda estarem muito lotados e serem o principal meio de transporte que passa pela USP, outras dez linhas circulam dentro do campus. No entanto, a extinção dos antigos circulares cinzas, que eram gratuitos, influenciou a comunidade São Remo. “Era mais fácil quando tinha o circular cinza, pela facilidade de as crianças poderem ir pra escola”, diz José Mariano de Santana, ex-morador.

Corrida imobiliária

“A busca por imóveis para locação também é bem intensa no começo do ano”, explica Marcelo Alonso, corretor de imóveis da região. Isso ocorre porque estudantes de outras cidades mudam sua vida para São Paulo quando entram na Universidade. Além disso, muitos imóveis valorizam por serem propícios para abrigar as repúblicas. “Se valoriza porque se torna um negócio lucrativo”, diz o corretor. Só no Rio Pequeno, o valor geral de vendas (soma de todos os empreendimentos) chegou a mais de 168 milhões apenas no ano de 2013, segundo pesquisa da Embraesp (Empresa Brasileira de Estudos Patrimoniais), divulgada pela Prefeitura de São Paulo. O corretor também explica que a compra de imóveis gira em torno de 330 a 350 mil, devido ao aspecto empreendedor e também pela proximidade da Marginal, do metrô, do comércio e do fácil acesso. No entanto, uma das características que ainda contam no valor imobiliário do Butantã, e que reforçam uma lógica preconceituosa, é a proximidade com a comunidade São Remo. “Quanto mais próximo da comunidade, mais barato as pessoas vendem”, diz Marcelo.

Integração

As principais condições que regem o funcionamento de uma Universidade são baseadas no tripé: ensino, pesquisa e extensão. Estes preceitos estão declarados no próprio estatuto da instituição. “Esta finalidade constitui a USP, obrigatoriamente, como parte da comunidade à sua volta”, diz Reinaldo Pacheco da Costa, vice-coordenador do Núcleo dos Direitos da USP. “São milhares os serviços de ensino e extensão oferecidos hoje à comunidade, por unidades e programas nos atuais oito campi do estado de São Paulo”. Os serviços, se estendem para a saúde, arte e entretenimento, esporte, tecnologia e educação. O Núcleo de Direitos é reponsável por cinco deles:
a) Aproxima-Ação; b) Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP); c) 3ª IDADE; d) USP Diversidade; e) USP Legal;Segundo o coordenador, existem duas possibilidades de ação. A primeira diz respeito à reformulação do Estatuto, onde a integração com a comunidade poderia incluir “a democratização e maior participação da comunidade e de seus representantes, tanto de fora quando de dentro da Universidade”. A segunda discussão levanta a aproximação do docente dos processos de Cultura e Extensão. “Mas muito pode e deve ser feito. A USP deve ser entendida como um amplo campo e espaço de discu ssões, onde as visões e propostas diferem”, diz Reinaldo.

Uma ilha na zona leste

Se, por um lado, a Cidade Universitária já foi incorporada à rotina da Zona Oeste paulistana, a USP ainda precisa de mais ações para cumprir com seu papel social de extensão da universidade pública. Essa sempre foi a motivação principal que levou à criação da Escola de Artes Ciências e Humanidades (EACH), instalada em um novo campus em Ermelino Matarazzo, zona leste da capital. Porém, a simples construção de um novo campus na periferia de São Paulo não foi suficiente para cumprir essa missão, como explica Philippe Gama, diretor de cultura do Centro Acadêmico Herbert de Souza. “A relação da EACH com as redondezas ali é bem complicada, porque ela foi um projeto pensado para integrar a Zona Leste com a universidade pública, em especial a USP, mas quase não atendende a esse princípio”, aponta. “Isso porque as pessoas ali do Jardim Keralux, a área mais carente do entorno, não têm acesso à universidad. Para pegar o trem na estação que foi construída para a universidade (USP Leste – Linha 12 Safira) eles têm que dar uma volta que às vezes nem compensa. É muito pouco o que a USP faz pelo Keralux”, detalha Philippe Gama. O conflito entre diferentes realidades econômicas e sociais é escancarado no campus da EACH. Os estudantes e professores têm medo da população local e se isolam do bairro, por acreditarem ser um local violento. Para Gama, os medos são infundados. “Nunca fiquei sabendo de gente da USP que foi assaltada no Keralux ou ali em volta. Eu mesmo morei ali e nunca foi algo perigoso para nós. Tem muito preconceito dos estudantes com a comunidade”, argumenta. “A desigualdade é gritante: basta olhar para o estacionamento da faculdade e você vê muita gente indo de carro zero e passando com os vidros todos fechados por medo”, critica. Para o dirigente estudantil, o conhecimento gerado nos cursos da EACH, como os de Gestão Ambiental e de Políticas Públicas poderia ser aplicado pela comunidade universitária para desenvolver a comunidade ao redor da USP Leste. “Não tem nenhum coletivo que se disponha a ir conversar com os moradores: onde falta saneamento; tem esgoto a céu aberto; é bem precário”, enumera. “Acaba que a USP é uma área insulada dentro da zona leste. As pessoas ali no Keralux não se sentem parte desse projeto porque a gente acaba não se aprofundando nas necessidades do bairro”.

Em 2015, uma nova entidade de estudantes foi criada para preencher esse vazio e integrar a população local com a USP, a EACH Social. Com o apoio da diretoria da Escola, o projeto de negócio social busca parcerias com ONGs da zona leste para prestar consultoria à estruturação de suas ações. Stella Paiva, diretora de marketing da empresa, explica que o projeto une toda a Escola. “Somos 60 alunos de diferentes cursos, anos e períodos. E é por meio do fomento ao empreendedorismo social e até mesmo pela nossa interdisciplinaridade que buscamos aumentar e fortalecer a integração da USP com a Zona Leste”, conta. Apesar de tanta diversidade, algo une o time em torno dos objetivos: “a vontade de fazer acontecer”, resume Paiva. “O nosso objetivo é aumentar a superfície de contato da universidade com a zona leste, convidamos os estudantes a enxergarem além dos portões do campus.” Em parceria com o Instituto Elos, a entidade trouxe para o Jd. Keralux o projeto Oasis. Composto por uma série de etapas de aproximação e imersão na realidade daquelas pessoas, a ação culminou em um mutirão de voluntários no último fim de semana de maio. Entre eles, estudantes da EACH decididos a transformar a realidade da comunidade, reformando, revitalizando, construindo e reconstruindo os espaços de convivência dos moradores do bairro. Foi uma das primeiras ações de grande porte dos estudantes eachianos com a população que os cerca. “Nós conseguimos reformar a biblioteca do Instituto Keralux; reformamos um espaço que não era utilizado; colocamos uma brinquedoteca; revitalizamos um ponto de ônibus com um espaço onde as pessoas podem ler e deixar revistas; a gente também colocou lixeiras, plaquinhas de conscientização; pintamos grafites na praça do bairro. Foi uma experiência muito legal e a comunidade ficou bem feliz com o resultado”, enumera a diretora.

 

(Foto: Nina Turin)
(Foto: Nina Turin)
Experiência paradoxal

Nem sempre a relação dos cidadãos com a comunidade estudantil é das mais saudáveis, como no caso de São Carlos. Lucas Fanti, estudante de engenharia aeronáutica, conta que o comportamento dos universitários, principalmente em festas, é motivo de revolta para os são-carlenses. “O pessoal da cidade odeia os estudantes da USP, porque, quando acontecem festas, eles ‘zoneiam’ a cidade inteira, vandalizam tudo, e algumas pessoas têm mania de ficar bêbadas e roubar as coisas”, detalha. Fanti lembra que, apesar dos problemas, há iniciativas de extensão. “Temos um teatro da universidade aqui e também entidades de alunos que realizam projetos sociais, como a empresa júnior”, acrescenta. A realidade vivida em outro campus interiorano, Ribeirão Preto, é diametralmente oposta. De acordo com Giulia Salgado, estudante de música, há grande interação do complexo universitário com a cidade. “Tem o Hospital das Clínicas aqui dentro, a odontologia, fisioterapia, fonoaudiologia: tudo na área de saúde o pessoal que é de fora pode usar”, diz. “Também tem atividades culturais abertas para a comunidade, a creche e grupos de projetos sociais. Então acho que o campus tem grande influência para a cidade”, comenta.

 

Por: André Spigariol e William Nunes