Um novo olhar para o espaço público

Ao se popularizar no Brasil, tendência mundial de atenção à cidade encontra obstáculos particulares: a desigualdade de nossos centros urbanos e sociedade

Muitos atores vêm se desdobrando para entender as possibilidades e limitações da cidade contemporânea. Durante a última semana de maio, entre a FAU e a FFLCH, a USP sediou eventos quase diários para discutir questões urbanas. Mais tarde, já em junho, a Prefeitura de São Paulo e o Google também se mostraram instigados, anunciando ferramentas para ajudar ações diretas dos cidadãos em seu meio. A empresa americana introduziu a Sidewalk Labs, cuja meta é desenvolver tecnologias para a vida urbana, enquanto Haddad sancionou uma lei que estimula a gestão participativa das praças paulistanas. De forma independente, no entanto, ações populares já vêm se desdobrando há algum tempo, propondo diferentes tipos de atividade e, sobretudo, discussão. Tanto em São Paulo quanto em outras cidades brasileiras, a maioria desses novos agentes se organiza em coletivos, e procura, acima de tudo, ocupar e transformar o espaço público.

Foto: Giovana Feix
Foto: Giovana Feix

No colóquio Cidades: Experimentações Sociais e Criatividade Política, a professora da FAU-USP Raquel Rolnik se esforçou para situar o que chama de “nova agenda urbana” diante das principais mudanças políticas das últimas décadas. Segundo ela, é a partir do contexto sócio-econômico dos anos 90 que o fenômeno dos “enclaves fortificados” se estabelece na urbe brasileira. Conceito emprestado da antropóloga Teresa Caldeira, esses enclaves são lugares em que as classes mais altas se fecharam, procurando uma sensação de segurança. Com as recentes ações dos coletivos, o que parece se tornar possível é o fim desse fenômeno. “Se fosse para fazer um filme, eu colocaria cenas das pessoas saindo daqueles condomínios, dos buffets de festa infantil, dos shopping centers”, brinca Rolnik. “Mas, ao chegar na rua, elas se confrontam com um modelo de cidade onde o espaço público é nada”. A negligência para com esses ambientes, segundo a pesquisadora, tem a ver com a própria dinâmica dos enclaves. “É clássico: os espaços das elites são cuidados. Se a elite não está lá, não tem cuidado”, explica.

Apesar do cenário bem brasileiro, a noção de agir diretamente no espaço público é uma tendência global. Muitos atribuem o começo disso ao movimento Occupy, que começou em Nova York e se destacou por reagir à crise de 2008. A fórmula desse tipo de ocupação tem sido usada em outros contextos, como aconteceu na Turquia em 2013, em protestos pela preservação de uma praça em detrimento de um novo shopping center. Há quem diga ainda que junho deste mesmo ano, no Brasil, também faz parte dessa dinâmica. A arquiteta Juliana Monferdini, que estuda o momento atual em seu doutorado, concorda com isso, mas tem suas ressalvas. “O que se observa até agora é que a chegada dessa tendência não consiste na simples cópia de um padrão. Esses movimentos têm grande importância para as cidades brasileiras”.

Muitas vezes, a burocracia do poder público e do meio acadêmico ainda fica confusa com o modus operandi desses novos agentes, que podem chegar a parecer “inconsequentes”. Integrante do coletivo A Batata Precisa de Você, no Largo da Batata, a designer Bruna Montuori explica essa dinâmica através do conceito de urbanismo tático. “É o modo como as pessoas se apropriam do espaço, pegam material, transformam”, explica. “É algo bem experimental, muitas vezes efêmero”. Um exemplo é o mobiliário que o coletivo construiu para o espaço (foto). “Quando a gente começou a se reunir, usava guarda sol e cadeiras de praia”, conta. Eles mesmos acabaram fazendo os bancos e mesas que agora são usados nos encontros semanais que promovem no Largo. “Na teoria, o ideal seria ter o poder público junto com a gente, olhando o que estamos fazendo, o que funcionou bem, onde funcionou bem, quanto gastamos. Além de devolver esse dinheiro para a comunidade, eles poderiam investir, a partir disso, em um mobiliário permanente”.

Na mesma semana em que o Google e a prefeitura anunciaram suas novidades, o SESC Pinheiros promoveu o seminário internacional Cidades Rebeldes, com acadêmicos e políticos debatendo essas movimentações. Diante do evento, foi convocado o ato A Rebeldia não será Gourmetizada. “O direito à cidade é um privilégio que poucos podem pagar” estampou uma grande faixa, e os participantes do protesto questionaram a ausência de movimentos sociais na programação. A arquiteta Juliana rebate certas críticas a esses novos agentes urbanos, como o Batata Precisa de Você, muitas vezes acusados de não agir de maneira ampla o suficiente diante dos problemas brasileiros. Muito disso acontece pelo fato de a atuação se dar, principalmente, em regiões nobres da cidade. “O processo de especulação imobiliária é muito mais perverso do que qualquer um desses coletivos, que são interessantes por chamar atenção a isso”, defende. “O Parque Augusta e o Parque Minhocão, por exemplo, são movimentos centrais que têm esse papel de incomodar”. O coletivo que defende o Parque Augusta, especificamente, está tentando impedir que um edifício residencial seja construído em uma das últimas áreas verdes da região central de São Paulo.

Ainda no colóquio, Raquel Rolnik comentou a possibilidade da chamada “gourmetização” dessa nova agenda urbana, com a iniciativa privada percebendo oportunidades. Com o crescimento do cicloativismo, por exemplo, empresas mundo afora constituíram parcerias com o poder público, gerando sistemas de bike-sharing. No Brasil, essa empresa foi o Itaú. O banco, atento também à volta da atenção ao espaço público como um todo, também está envolvido em investigações do blog Arquitetura da Gentrificação sobre uma possível reforma, junto à prefeitura de São Paulo, do Vale do Anhangabaú. “Diante das novas demandas, é possível uma privatização do espaço público”, explica Rolnik, desanimada. É como se um novo “enclave”, dessa vez a céu aberto, pudesse se formar. “É uma luta constante”, conclui a urbanista.

Por Giovana Feix