“Não vai ter mudança no Brasil se não tiver mais dinheiro para a educação”

Lisete Arelaro comenta diretrizes do Plano Nacional de Educação, o crescimento da privatização do ensino e os desafios para melhorar a qualidade das escolas públicas no país

Na quarta-feira (24) o Plano Nacional de Educação completou um ano desde sua aprovação. O projeto apresentou vinte metas que devem ser alcançadas pela educação nacional até 2024. Agora estão sendo debatidos em todo o Brasil os planos estaduais e municipais de educação, que devem adequar estas diretrizes para as diversas realidades regionais no país.
Nas discussões surgiram diversos grupos ligados aos setores mais conservadores das igrejas que têm pressionado para que a discussão de gênero seja retirada dos planos. Mas muito mais está em jogo nos rumos das políticas públicas de educação, como o financiamento, a privatização do ensino público e as condições de trabalho dos professores, por exemplo.
Para discutir diversos destes pontos, entrevistamos Lisete Arelaro, ex-diretora da Faculdade de Educação da USP entre 2010 e 2014 e professora titular da universidade. Já foi professora e diretora de escolas da rede estadual de ensino de São Paulo e chegou a trabalhar na equipe de Paulo Freire quando ele foi Secretário de Educação de São Paulo durante a gestão da prefeita Luiza Erundina (PT). Também foi Secretária de Educação, Cultura, Esporte e Lazer de Diadema, na grande São Paulo, entre 1993 a 1996 e de 2001 a 2002.

Foto: André Spigariol
Foto: André Spigariol

Jornal do Campus: O Plano Nacional de Educação indica que 10% do PIB deve ser destinado à educação até o final de sua vigência, em 2024. Os Planos Municipais e Estaduais que estão sendo aprovados conseguirão auxiliar o Brasil a atingir esta meta?

Lisete Arelaro: Nós temos dois problemas. No PNE, quando você lê a Meta 20, você fala: “bom, conseguimos o objetivo”, que era fazer do PIB um indicador importante e respeitável em relação a isso, e o número dos 10%, que não era um número cabalístico. O nosso companheiro José Marcelino, de Ribeirão Preto, fez muitos cálculos para mostrar porque 10% era necessário e sugestões de onde gastar o dinheiro. Para quem gasta 4,5%, ir para 10% é um volume considerável. Mas é importante dizer que no quarto parágrafo do artigo 5 da lei essa questão é rediscutida. O que será considerado como manutenção e desenvolvimento do ensino inclui as verbas que estão sendo transferidas para os privados, especialmente PROUNI, FIES, PRONATEC e os convênios com creches conveniadas. Isso significa que na prática nós não vamos ter 10% para o ensino público.
De todo o jeito, há um dinheiro a mais. Nós estamos imaginando que isso vai motivar os estados a proporem uma meta que tenha relação com o PIB. Surpreendentemente o estado de São Paulo, o mais rico e que gasta pouquíssimo na área de educação em relação ao PIB do estado, não propõe nenhum gasto a mais, mas apenas sugere ao governo federal que se rediscuta os recursos no Brasil. Não que a gente seja contra, mas são duas coisas diferentes. Eles deviam ter feito essa sugestão para o Plano Nacional de Educação. Para o Plano daqui, deviam dizer quanto que o governo estadual vai colocar a mão no bolso para melhorar a educação em São Paulo. Eles não mencionam nem um centavo a mais.
O sistema de municipalização do Brasil aconteceu empurrado pela política de fundos, que hoje se chama FUNDEB, mas em 1996, em seu início, era FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério), que ficou conhecido como fundo de nome comprido e dinheiro curto e que só atendia o ensino fundamental. Isto levou a um processo de municipalização do ensino fundamental de todo o Brasil de forma exagerada. Muitas vezes sem condições dos municípios arcarem com esta responsabilidade do tamanho que estava sendo transferida a ele. Digamos que os prefeitos esperavam por um baú no final do arco-íris que nunca chegou.
A questão do financiamento é vital. Não vai ter mudança nenhuma no Brasil se de fato não tiver mais dinheiro para a educação.

JC: As universidades estaduais, por exemplo, sobrevivem com os 9,57% do que o estado de SP arrecada com o ICMS. É o suficiente para manter três universidades do tamanho de USP, Unesp e Unicamp?

LA: Os nossos três reitores parece que têm preguiça de levantar da cadeira e ir até a ALESP. É incompreensível essa atitude. Seria importante que eles nos convocassem para uma ação conjunta. Há um certo incômodo de muitos deputados, inclusive do PSDB, que reconhecem que as três universidades cresceram muito nos últimos dez anos e que evidentemente só os 9,57% do ICMS é insuficiente. Até porque no estado de SP o governador fez muitas autorizações de liberação ou redução das alíquotas do ICMS, o que rebaixa o potencial deste percentual. Nós tínhamos proposto 11,5%. Houve uma ampliação nos últimos anos que não conseguirá ser mantida num patamar de qualidade a menos que haja complementação dos recursos financeiros.

Já conseguimos uma vitória, que é que o governador retirasse da sua proposta [de Orçamento, que começou a ser discutida no dia 30] o termo “no máximo” 9,57%, o que significava que ele poderia dar menos. E não haveria garantia nenhuma.

JC: Continuando no ensino superior, é clara a opção do governo federal de estimular programas como o PROUNI e o FIES, que ao mesmo tempo que possibilitam a entrada de muitos jovens no ensino superior, fazem com que o governo abra mão de muitos recursos em nome de certos grupos que comandam o ensino superior privado. Qual sua opinião sobre este tipo de programa de governo?

LA: Se estes programas tivessem um prazo de validade você até poderia admitir. Mas já se passaram praticamente dez anos, portanto não é mais um programa, é uma política de governo, o que passa a ficar mais complicado. Lembrando que na época do governo FHC o Paulo Renato de Souza, ministro de educação na época, afirmava que uma das políticas do seu governo era deixar o ensino superior para os privados e o público ficaria com a educação básica. O que era uma posição muito tranquila para ele, já que o governo federal não participa [da educação básica].

Nenhum país, fora o Japão que só tem uma universidade pública, é louco de transferir o ensino superior para os privados. Até os EUA, que a gente gosta de copiar tanto, tem 60% das universidades públicas. Eles cobram mensalidade, mas é público. Esta discussão é delicada, porque, surpreendentemente, o PT que era contra, na prática ficou a favor desse pensamento.

Estamos numa situação nova no ensino superior brasileiro, que não havia há dez anos atrás. Os conglomerados educacionais estão cada vez mais presentes no Brasil. Temos mais de 5 milhões de jovens de 18 a 29 anos, que poderiam estar no ensino superior, então somos um mercado em potencial. Estes conglomerados são absolutamente mercantis, o que importa para eles é o valor de ação na bolsa, não tem nada a ver com qualidade de ensino. Esta é uma preocupação que ou o Brasil estabelece regulamentos e aprova leis que vetem isso, ou vamos ter um problema a curto e médio prazo que não é pequeno.

Com essas políticas do governo de favorecimento do PROUNI e do FIES, você tem uma situação maluca. Li ontem num depoimento deles que 43% de todos os alunos deles estão vinculados no PROUNI e no FIES. Ou seja, estamos sustentando os lucros destes mercantilistas. Este é o grande problema. Discutir qualidade é até ridículo. Quem tem ido nas faculdades privadas vê. Se você, como aluno, for reclamar, você encontra um gerente – nem se fala mais em diretor, que é coisa muito sofisticada – que vai te dizer que você tem o ensino mediante ao quanto você paga. Se paga R$ 300, você tem determinado ensino. Se paga R$ 500 você tem melhor, assim como se pagar R$ 800. Isso sem a pessoa ficar corada.

Essa é uma questão que o governo vai ter que entrar forte, porque a discussão sobre qualidade e formação da nossa juventude é muito importante. Eu posso achar interessante que você amplie o número de diplomas, que você possa escrever pra UNESCO que x por cento tem diploma de nível superior, mas isso não tem nenhum sentido se não há preparação efetivamente profissional, tecnológica, científica, artística, literária, desta titulação.

Estes programas do governo estão na hora de acabar. Sem dúvida nenhuma. É lógico que se você vira ministro hoje, não dá pra acabar com esses programas de uma hora pra outra, porque se criou um problema social. Realmente o jovem pobre quer fazer o curso — mesmo que em qualquer lugar e qualquer curso. Logicamente não há sentido nem condições de estadualizar ou federalizar essas empresas. Mas eu acho que tem que haver uma decisão política e diminuir isso a cada ano. As seis universidades públicas em SP representam 9% das vagas. Em geral no Brasil, você tem 25% das vagas em cada estado como públicas. Não há dúvida que você precisa maior investimento estadual e federal. Exatamente para ir estabelecendo exigências.

JC: Na educação infantil, também há um movimento de conceder os Centros de Educação Infantil da rede pública cada vez mais à rede indireta e a conveniada, que são formas privadas de administração, uma espécie de “terceirização” do ensino. Como você vê esse movimento?

LA: Isso está acontecendo em todo o Brasil. Em todo lugar que tiver reivindicação pra educação infantil tem isso. Primeiro, o nosso maior problema em SP, por exemplo, não é a terceirização do público, é a terceirização direta. Nós temos 357 creches diretas para mais de 1300 conveniadas. Há outro problema, que são as cerca de 100 mil crianças para serem atendidas na lista de espera. Não tem jeito, você tem que ir fazendo uma polipolítica. Construção de novas creches, publicização das indiretas, negociação com as conveniadas para que elas sejam de melhor qualidade e manutenção destas que estão. O tempo foi passando e hoje é uma situação maluca, não dá para tomar uma atitude em uma única direção. Qualquer que seja a sua direção, você não dá conta das 100 mil crianças. A mim me preocupa que a curto prazo só exista a possibilidade da terceirização privada. Eu defendo, obviamente, que todas as creches que sejam construídas não sejam transferidas e que você comece gradativamente a tirar da administração privada.

JC: Aproveitando o gancho do número de alunos por sala de aula, a redução desse número é uma reivindicação muito antiga. Ao mesmo tempo que pedimos creches públicas, número de alunos menor, mas ao mesmo tempo atender ainda mais as 100 mil crianças que estão esperando por vaga. Como reduzir essa quantidade de alunos por sala e atender a toda a demanda da educação básica?

LA: Eu tenho sugerido que a gente tranque qualquer secretário de educação ou prefeito para ficar numa creche. Em dois dias ele defenderia a redução de alunos por sala de aula.
Por isso uma das razões de defender os 10% do PIB para a educação. Para poder rediscutir para onde vai o dinheiro. Tem duas coisas que são fundamentais nesse momento. Aumentar o salário de professor e reduzir o número de alunos em sala de aula. Se fôssemos um país pobre africano, até tudo bem, não tem escola, você coloca quantos alunos por sala precisar para atender todo mundo, não tenho problemas com isso. Mas o Brasil está em outro patamar. O Brasil não é um país pobre, é um país desigual. Está chegando na hora de estabelecer outros patamares de igualdade, e um deles é a educação pública. Em diversos países você só tem educação pública, rico e pobre estudam juntos. Há uma desconsideração pela escola pública aqui, que a gente precisa recuperar. Já temos um problema que é a formação de professores. Mesmo a USP já começa a ter vagas ociosas, só não temos aqui na Pedagogia porque a gente forma diretor, especialista, mas do ponto de vista concreto, se pegar as licenciaturas na USP, já começamos a ter vagas ociosas. Porque no Brasil, de ponta a ponta, o professor ganha muito mal. O professor no Brasil, com a mesma formação, ganharia 65% a mais caso ele tivesse qualquer outra profissão. Para que os jovens topem ser professores, é preciso um investimento.

JC: Qual sua opinião sobre a aprovação do uso do ENEM para parte das vagas da USP para o ano que vem?

LA: Eu acho que, pro jeito como é feito o nosso vestibular, é um ganho democrático. Não que eu defenda o ENEM, porque ele não foi criado para ser um exame nacional do ensino superior, está se confundindo as coisas. Mas frente ao que a gente faz aqui na Fuvest, é um ganho. Mas veja que os cursos ditos nobres não aceitaram. Isso mostra o que a USP é. São os alunos que eu quero, dentro de um determinado tipo de formação. É um pouco de arrogância até, de achar que só nós sabemos.

JC: Qual sua opinião sobre a educação em tempo integral? Em época de eleição é sempre uma bandeira que os candidatos gostam de levantar como solução da educação. Como efetivar que o maior tempo nas escolas se torne em maior aprendizado?

LA: Essa é uma disputa que o Brasil vai ter que fazer. É verdade, se tenho o aluno por mais tempo dentro da escola, por suposto eu vou ter maior possibilidade de enriquecimento curricular. Nós também sabemos que ficar lá mais tempo fazendo a mesma coisa que está sendo feita hoje, não precisa. Mas a experiência está aí, os países desenvolvidos do ponto de vista socioeconômico têm um ensino em tempo integral no qual há possibilidade das crianças e jovens terem várias atividades durante o dia com o mínimo de condições. Acho ousado, temos que caminhar para lá, mas ainda considero que aumentar o salário dos professores e reduzir o número de alunos em sala de aula é prioridade. Em educação não dá pra fazer uma coisa só, mas também não dá pra definir tudo como prioridade. Para mim, a principal prioridade é reduzir o número de alunos em sala e aumentar o salário dos professores.

JC: Outro ponto muito comentado é a progressão continuada. É outro tema que divide opiniões e na população e na mídia é vista muitas vezes como algo extremamente negativo, porque “passaria aluno sem saber”. Qual sua opinião sobre essa política?
LA: Esse é um assunto quase maldito hoje pra discutir com qualquer um. São Paulo, quando começou com isso durante o governo Mário Covas, matou a ideia com a forma como eles fizeram. Eu sou uma pessoa defensora dos ciclos na educação, que implicam no conhecimento de que você tem tempos diferentes de aprendizagem. E que efetivamente todos aprendem alguma coisa todos os dias, inclusive nós professores. Mas essa organização em ciclos é mais cara, mais trabalhosa, porque implica em trabalho coletivo de professores, há várias cirscunstâncias que fazem com que os ciclos não sejam o mais barato, mas para mim é o que mais funciona.

Nos ciclos a gente defende, exatamente por aprender todos os dias, não uma aprovação automática, mas a progressão continuada. Agora esse assunto é um problema. São Paulo matou, porque passou a ser obrigatório e os professores se sentiam ofendidos, porque mexia bastante com seu poder de decisão.

JC: Então no modo como a escola pública é hoje, a progressão continuada é falha?

LA: A reprovação não tem significado pedagógico nenhum. Se eu posso ter críticas ao que vem sendo feito, se a outra opção for reprovar, eu vou defender a progressão continuada. A reprovação no ensino básico nos países desenvolvidos praticamente não existe.

JC: O governo de SP propôs oferecer, a partir de 2016, disciplinas optativas no ensino médio. Dessa forma, os alunos construiriam parte de seu currículo a partir de seus interesses. É uma medida positiva?

LA: O problema é que não tem nada disso. Vai fazer isso porque não tem professor para todas as matérias e eles não conseguiram manter os professores lá. Não tem nada a ver. Então como o aluno não tem escolha, ele vai fazer as aulas do professor que tiver lá. Isso é grave, um equívoco, espero até que eles nem levem isso a sério. Tem que entender que tem que pagar melhor e ter professor na rede.

JC: E sobre gestão democrática, poder conceber uma escola onde a comunidade escolar (pais, professores, alunos e funcionários) participa diretamente de todas as decisões da escola, desde a construção do projeto político-pedagógico até as questões de natureza burocrática é possível? Quais as vantagens e desvantagens deste modelo?

LA: A gestão democrática é uma diretriz da educação nacional. Mas gestão democrática dá trabalho. Você não consegue conciliar um ensino programado para o professor com o ensino apostilado vindo da secretaria e depois falar que vai ter gestão democrática. Nós estamos vivendo isso no país. Como você criou o IDEB (Indicador de Desenvolvimento da Educação Básica) que tem um objetivo para cada município, e o município que não atingir não pode usar recursos federais, evidentemente ele vai tentar atingir a meta de qualquer maneira.

Vamos ter que escolher. Estimular que cada escola tenha seu plano político-pedagógico, que defenda aquilo que eles estão propondo, é a primeira medida para as coisas começarem a funcionar. Isto implica em opções, e hoje no Brasil está ficando difícil, porque a cada vez que você acorda tem uma nova prova nacional. Você está desacreditando que a escola, os professores e os especialistas de ensino possam fazer alguma coisa. Estamos numa fase contraditória, ao mesmo tempo em que estamos numa democracia, dentro das escolas você ter medidas altamente autoritárias.

JC: Então a senhora acha que esses exames nacionais, que existem para medir a qualidade do ensino, sabotam a gestão democrática?

LA: Eles têm sabotado, porque estão implicando em uma orientação sobre que conteúdos devem ser ensinados. E só valorizando aqueles conteúdos. O que não for ensinado daquela maneira, que viabilize que a criança e o jovem possam responder da maneira correta, não é considerado bom. É uma visão simplista sobre o cotidiano escolar. Imaginar que todos têm a mesma condição de trabalho, os mesmos interesses, num país continental como o nosso.

JC: Há um movimento de setores mais conservadores pedindo a retirada de menções a gênero e orientação sexual, dizendo que este tipo de educação quem concede são os pais. Qual sua opinião sobre a discussão de gênero nas escolas? Por que esta questão levanta tanta polêmica?

LA: Não se imaginava que estes grupos conservadores iam se mobilizar dessa forma. Já tinhamos tido isso no Plano Nacional de Educação, eu era presidente do Fórum Nacional de Diretores de Faculdades de Educação Públicas e também foi uma surpresa. A educação sobre gênero aconteceria mais ou menos como a de direitos humanos, por isso estamos insistindo nessa questão. Desde a época que o ministro da educação era o Fernando Haddad, quando o kit Escola Sem Homofobia foi recolhido, eu diria que de lá para cá nós pioramos.

Eu trabalhei com o Paulo Freire na gestão da Luiza Erundina, tínhamos um programa pioneiro na questão da AIDS. Me surpreendeu que professores e professoras nossos não contavam aos colegas que tinham AIDS. Você imagina o desespero, num dia que você nem está bem para dar aula, não ter sequer a solidariedade do grupo. Você tem pré-conceitos do próprio professor sobre sua condição. Por isso que a gente defende que o curso de formação de professores tenha estas questões de direitos humanos em seu currículo. Mas às vezes é complicado na própria sala de aula, pela própria formação cidadã dos professores que vão trabalhar diretamente com os alunos.

Por Murilo Carnelosso